Nonato Guedes
É formidável o elenco de inimigos que o presidente Jair Bolsonaro cultiva – do garçom Adélio Bispo, que o esfaqueou na campanha eleitoral de 2018 durante um evento em Juiz de Fora, Minas Gerais, ao ministro do STF Alexandre de Moraes, que suspendeu a posse de Alexandre Ramagem na direção-geral da Polícia Federal, inviabilizando a cartada nepotista planejada pelo capitão, já que o pretendente à vaga tem notórias ligações de amizade com filhos de Bolsonaro. O presidente também detesta Sergio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Rodrigo Maia e os governadores de São Paulo, João Doria e do Rio, Wilson Witzel por tê-los como virtuais adversários numa campanha à reeleição em 2022. Mas a grande birra do capitão é em relação ao Supremo, porque tem se mostrado capaz de deter os instintos autoritários dele.
O STF procura trilhar o rumo da legalidade, levando em consideração dispositivos consagrados na Constituição vigente. Logo, está comprometido com o Estado de Direito, uma vez que tais dispositivos derivaram de proposituras democraticamente debatidas e acolhidas como essenciais para a manutenção dos princípios basilares que norteiam o regime adotado no país. Ainda em abril, quando decidiu que Estados e municípios têm autonomia para tomar decisões de caráter emergencial face à pandemia do coronavírus o Supremo procurou fazer valer o princípio federativo. Não interferiu no sentido de retirar poderes da esfera da União, mas deixou-se reger pela excepcionalidade da conjuntura que é experimentada atualmente e que requerer descentralização de atribuições a fim de que não se estabeleça o caos que seria fator certeiro de convulsão, de anormalidade indesejada.
Em relação ao funcionamento das atividades essenciais, governadores e prefeitos baseiam-se nas condições específicas ligadas à densidade populacional e ao quadro possível de segurança para impedir a disseminação do contágio de covid-19. A reabertura de tais ou quais setores está condicionada ao exame objetivo do pico da doença, uma vez que nenhum governante que se preze quer passar à História carregando caixões de vítimas de uma epidemia que colheu a humanidade de surpresa e que ainda hoje desperta mais interrogações do que respostas concretas por parte de especialistas renomados e dos mais qualificados profissionais da medicina. Na ânsia de demonstrar populismo exacerbado e, em paralelo, de ceder a pressões de grupos econômicos que estão sofrendo prejuízos no caixa, Bolsonaro quer confrontar as medidas sanitárias. Opõe a Ciência à Economia, ao invés de tentar conciliá-las na base do diálogo.
Fica evidente que numa queda de braço dessa natureza, mais do que a força de argumentos ou a disponibilidade de instrumentos de poder, deve prevalecer o bom senso como solução exemplar para prevenir ou evitar uma tragédia de consequências absolutamente imprevisíveis. Não há nenhum achismo nesse tipo de postura, senão uma avaliação realista do quadro, a par de experiências testadas em países que já enfrentaram as curvas oscilantes de propagação da doença. Bolsonaro deveria agradecer a colaboração refletida no empenho para não facilitar o descontrole das rédeas da situação em pico de calamidade. Em vez disso, ousa pregar respeito à democracia – logo ele, que a cada semana tem recaídas saudosistas dos tempos do Ato Institucional Número Cinco.
As reações de alguns ministros do Supremo são encaradas no núcleo de poder que gravita em torno de Bolsonaro como manobras destinadas a favorecer adversários políticos de Bolsonaro, principalmente tucanos e petistas. O ministro Alexandre de Moraes, como informou a revista “Veja”, é tachado de tentáculo do PSDB dentro do Supremo porque, com suas decisões, deu poderes a governadores e a prefeitos para lidar com a pandemia e suspendeu a indicação de Ramagem para a PF. Na função de relator do inquérito das fake news, Moraes teria como objetivo apresentar os filhos do presidente como os chefes de um esquema criminoso, conforme a versão que circula no entorno de Bolsonaro. Um outro ministro, Gilmar Mendes, é mal visto porque em plena crise voltou a debater com parlamentares a adoção do regime semipresidencialista, que reduz os poderes do presidente da República. Também se tornou um crítico das manifestações de rua a favor do governo e é igualmente apelidado de tucano por ter sido indicado para a Corte por Fernando Henrique Cardoso.
Bolsonaro vê fantasmas em todos os lugares, até na sua intimidade dentro do Palácio do Planalto. Tem insistido, em conversas pontuais com interlocutores de confiança, em desfiar teorias conspiratórias que são montadas periodicamente para provocar um impeachment seu à frente da Presidência da República. O presidente está descompensado porque não pôde viabilizar promessas demagógicas formuladas quando candidato nem está se credenciando a obter espaços para pleitear uma reeleição. Esse tipo de preocupação não é típica do Supremo. Que, por se limitar a cumprir a lei e acatar a Constituição, impede Bolsonaro de vitoriar no projeto de ser um ditador, que é o que ele almeja de verdade e não tem a coragem de confessar. A democracia, obviamente, agradece quando o Supremo age em sua defesa.