Nonato Guedes
O “Memória Globo” lembrou que há 15 anos, ontem, vinha à tona o escândalo do mensalão. De maio de 2005 até março de 2014, arrastou-se no Supremo Tribunal Federal o julgamento da Ação Penal 470, envolvendo a apuração da compra de apoio parlamentar no Congresso, e no interior de partidos aliados, por emissários do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O escândalo levou à prisão alguns importantes membros da cúpula do PT na época, como José Dirceu e José Genoíno. Durante muito tempo o ex-presidente Lula negou a existência do mensalão para, enfim, em tom patético, pedir desculpas ao povo brasileiro pelas maracutaias cometidas por petistas e seus asseclas. No dizer do ministro Carlos Ayres Britto, foi um ponto fora da curva no processo institucional brasileiro.
No livro “Mensalão – O dia a dia do mais importante julgamento da história política do Brasil”, Merval Pereira diz que o julgamento do mensalão foi uma espécie de fecho nada dourado da Era Lula. Tudo começou quando o deputado federal e então presidente do PTB, Roberto Jefferson, foi acusado de chefiar um esquema de corrupção nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) em maio de 2005. Jefferson atribuiu à cúpula do PT a negociação de cargos e o repasse de dinheiro, como uma mensalidade ou mesada, daí o termo “mensalão”, a deputados da base aliada como forma de comprar apoio de parlamentares do Congresso Nacional. Segundo ele, a operação ficava a cargo do publicitário Marcos Valério, sócio das agências de publicidade DNA e SMP&B, que mantinham contratos com órgãos públicos, e de Delúbio Soares, tesoureiro do PT. Eles agiriam sob comando da figura mais importante do governo do presidente Lula – o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Foram meses de denúncias e investigações. A Comissão de Ética da Câmara abriu um processo para a cassação de Roberto Jefferson e duas Comissões Parlamentares de Inquérito foram instaladas. A denúncia formal chegou ao Supremo Tribunal Federal no ano seguinte, que deu início ao julgamento apenas em agosto de 2007. Foram necessárias cinco sessões para a abertura do processo, que julgou 38 réus e terminou sendo o julgamento mais longo da história da Corte. Entre as fases de denúncias, investigações e julgamento até a conclusão de todos os recursos foram, portanto, nove anos de exposição na mídia. O episódio do mensalão, na opinião do jornalista Merval Pereira, foi o ponto de inflexão do governo Lula.
“Até aquele momento, em 2005, o de Lula era “um governo que não roubava nem deixava roubar”, na definição do então ministro-chefe do Gabinete Civil, José Dirceu, depois identificado pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, como o chefe de uma quadrilha que, de dentro do Palácio –o Planalto, organizou a trama complexa e engenhosa. No dia em que o publicitário Duda Mendonça, autor do personagem “Lulinha, Paz e Amor”, que foi eleito em 2002, confessou na CPI que recebera dinheiro ilegal em um paraíso fiscal como pagamento da propaganda para a campanha presidencial que elegeu Lula, houve choro e ranger de dentes no Congresso. Foram meses com o fantasma do impeachment rondando o Palácio do Planalto e houve até mesmo uma tentativa de acordo, levada a cabo pelos ministros Antônio Palocci, da Fazenda, e Marcio Thomaz Bastos, da Justiça, para que a oposição não insistisse no processo, com a contrapartida de Lula desistir da reeleição”.
A oposição, na definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não tinha “gosto de sangue” na boca e temeu a ameaça de que os chamados “movimentos sociais” sairiam à rua para defender o mandato de Lula. O próprio Fernando Henrique dizia que não era inteligente criar um “Getúlio vivo”, referindo-se ao episódio do suicídio de Getúlio Vargas, que reverteu o estado de espírito da população a favor do presidente morto. Lula reverteu a percepção do povo brasileiro de maneira espetacular, sem precisar de gestos extremos – avalia Merval Pereira. O ex-presidente só foi pilhado tempos depois, quando o juiz Sérgio Moro decretou sua prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em outros escândalos de proporções igualmente graves.
O julgamento do mensalão só aconteceu nove anos depois de os fatos ocorrerem, sete anos depois de denunciados e cinco depois do início do processo. “Num país em que, de maneira geral, os políticos não vão sequer a tribunal, 38 réus ligados direta ou indiretamente ao governo que estava no poder serem julgados pela última instância do Poder Judiciário foi fato que por si só fortaleceu a democracia brasileira”, anotou Merval. Figuras como o ministro Joaquim Barbosa, relator da AP, projetaram-se até no exterior. O país acompanhou pela TV, ao vivo e em cores, tudo o que se passou na mais perfeita ordem democrática do Estado de Direito. Todo o processo do julgamento foi encarado como um avanço da cidadania – dele resultando, por exemplo, a Lei da Ficha Limpa. A corrupção não acabou, não acabará nunca. Mas a impunidade foi ferida de morte no país.