Nonato Guedes
Na edição de 29 de junho de 1946 da revista “O Cruzeiro”, uma reportagem bombástica assinada pelo jornalista David Nasser e ilustrada com fotografias de Jean Manzon apresentou, em onze páginas, o deputado constituinte Barreto Pinto semidesnudo, em cuecas e fraque. Foi um escândalo, provocou enorme repercussão na mídia e levou à cassação do restinho do mandato de Edmundo Barreto Pinto, do Partido Trabalhista Brasileiro, a primeira na história política do Brasil. A trajetória da dupla David Nasser-Jean Manzon (este, de naturalidade francesa), foi contada no livro “Cobras criadas”, escrito por Luiz Maklouf Carvalho, jornalista, que faleceu ontem aos 67 anos em São Paulo. Maklouf tratava um câncer no pulmão e atuou em jornais como Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Movimento, Jornal da Tarde, O Estado de S. Paulo, onde ainda era repórter, e revistas Época e Piauí.
Segundo sua narrativa, Barreto Pinto, que era “getulista de quatro costados”, foi eleito deputado em 1934 e perdeu o mandato com o golpe de 37. Teve apenas seiscentos votos nas eleições de 1945, mas foi garantido pela avalanche de votos em Vargas. Folclórico e picareta conhecido, já tentara escândalo semelhante posando para o “Diretrizes” embaixo do chuveiro, de peito nu, a dizer que era Getúlio “até debaixo d’agua”. Não houve maior consequência, então. Maklouf afirma que é possível que a foto não assinada do “Diretrizes” tenha animado a dupla Nasser-Manzon a uma façanha maior. Barreto aparece pela primeira vez na matéria “Os alegres deputados”, de 23 de fevereiro, aberta por um provável flagrante de Manzon – o deputado Benedito Valadares dormindo, de boca aberta, com terno e gravata. Barreto é um dos retratados. A legenda o chama de provocador, tanto em 1937 como naquele momento. No texto – um diálogo fantasioso entre deputados – Nasser o qualifica de “espírito de porco” e o coloca em diversas situações ridículas. Volta a criticá-lo em outras matérias subsequentes, e numa delas, com máxima irreverência, pergunta ao deputado quantas amantes ele tem. “Não sei o número exato de minhas amantes. Amanhã te direi”, respondeu ele, segundo o repórter. Não houve queixas, cartas, processo, nada. Até surgir a matéria “Barreto Pinto sem máscara”, com ele em cuecas e fraque.
“Repercutem, afinal, na Constituinte, as ‘poses’ do sr. Barreto Pinto para fotógrafos da imprensa”, deu O Globo na primeira página de 28 de junho, com foto de Nasser, Manzon e Accioly mostrando os negativos a um redator. Toda a imprensa brasileira seguiu na mesma trilha e a revista americana “Time” publicou nota com reprodução de uma das fotos. A “Time” não citou Nasser, só Manzon e “O Cruzeiro”. A discussão que imediatamente se estabeleceu – segundo Maklouf – podia ser resumida na pergunta que fez O Globo: “O sr. Barreto Pinto deixou-se, espontaneamente, fotografar em trajes menores ou fora apenas vítima de algum truque?”. A versão do deputado veio em nota oficial publicada no mesmo dia com o título “Desfazendo uma chantagem”:
– Uma revista do sr. (Assis) Chateaubriand publicou, ontem, uma entrevista imaginária, acompanhada de fotografias preparadas com o engenho do “truc” (sic). Serviço realizado por um turco e um francês, assalariados do sr. Chateaubriand. Procurando desmoralizar-me, os meus bons inimigos, entretanto, desmoralizaram a revista. Também não conseguiram levar-me ao ridículo e amedrontar-me. A minha rota não sofrerá solução de continuidade, apenas com os olhos voltados para o Brasil.
“Se quiséssemos, ele se deixaria fotografar nu”, contrapôs Nasser a seu antigo jornal. E acrescentou: “O deputado Barreto Pinto é um tipo fácil. Não só se presta a tudo, nas reportagens, mas ajuda os repórteres com idéias e sugestões. Aquelas fotografias da banheira e ao lado dos olhos da mulher amada foram “sugestões Barreto Pinto”, assim como as do traje de gala sem calças”. Jean Manzon também defendeu-se: “Primeiro: não me envolvo em assuntos de política nacional no Brasil. Nunca me envolvi, aliás. Sou repórter-fotográfico absolutamente neutro e executo apenas serviços de interesse estritamente jornalístico, seja qual for o assunto. Sem paixões, sem ódios e visando apenas servir ao público. Isto, às vezes, exige sérios sacrifícios pessoais e complica a vida de um repórter. É o caso Barreto Pinto. Nunca, em minha carreira, fiz um truque fotográfico. Os negativos dessa discutida reportagem estão aqui, à disposição de quem deseje vê-los. Quero salientar que fiz ao Senhor Barreto Pinto, contra quem nada tenho, seja ódio ou admiração, as seguintes observações: “Doutor, estou achando essas fotografias prejudiciais ao seu nome”. E ele nos respondeu: “Não tem importância. Nos Estados Unidos se faz pior”. Todas as fotografias que batemos de Barreto Pinto nessa última reportagem de “O Cruzeiro” foram posadas por ele. Outras piores não se pôde publicar”.
Barreto Pinto explicou, na ocasião, que recebeu os dois repórteres, em casa, a pedido do secretário de redação do “Diário da Noite”, Sebastião Isaías. E que deixou-se fotografar só com a casaca, em cuecas, porque os dois disseram que só iriam “aproveitar o busto”. Em nota publicada pelo “Diário da Noite” de 2 de julho – “Não houve truc” – a dupla ofereceu os negativos guardados no cofre-forte de “O Cruzeiro” ao Partido Trabalhista, à Assembleia Nacional Constituinte e a quem mais desejasse examiná-los. Informaram, então, que a reportagem foi feita no dia 13 de junho, na avenida Atlântica, 200, das 10h da manhã ao meio dia, “estando o sr. Barreto Pinto em seu estado normal”. E concluíam: “Contra negativos fotográficos não existem argumentos”.
No começo de julho o PTB suspendeu Barreto Pinto por quatro meses, a seu próprio pedido. Em maio de 49, quase ao final da legislatura, a Constituinte lhe cassou o mandato por quebra do decoro parlamentar. Não houve perda dos direitos políticos. Foi eleito suplente de deputado em 1950, exercendo o mandato de fevereiro a abril de 52, e de setembro de 54 a janeiro de 55. Foi sempre amigo de David Nasser, antes, durante e depois da reportagem, a ponto de permitir que o jornalista escrevesse e/ou inventasse suas memórias em folhetim publicado pelo “Diário da Noite”. A reportagem que consolidou a fama da dupla Nasser-Manzon dividiu opiniões dos colegas de “O Cruzeiro”. Hélio Fernandes afirmou que a pauta foi da revista e não dos repórteres e que Nasser não estava presente na hora das fotos. Flávio Damm, mais tarde fotógrafo de Nasser em algumas matérias, acredita que a dupla e o deputado planejaram o escândalo. “O Barreto Pinto era casado com uma mulher rica e queria popularidade. Chamou o David e o Manzon e disse: “Quero uma reportagem que me faça conhecido no Brasil inteiro”. Com uma condição – a de processar os dois. Aí criou-se a popularidade do Barreto Pinto, de “O Cruzeiro” , do David e do Manzon”, acrescentou. O que ficou gravado na memória de todos são as fotos com a cueca samba-canção, apenas quatro entre as dezesseis que foram publicadas. O deputado apareceu também na banheira, sorrindo, nu da barriga para cima. A cassação por falta de decoro, ainda que tardia, foi considerada justa por setores da sociedade da época, diante do exibicionismo ostensivo do parlamentar folclórico, já falecido.