Nonato Guedes
Há um consenso entre analistas de destaque da mídia nacional sobre sinais de encolhimento da liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva junto a segmentos de esquerda e/ou de oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Depois que foi posto em liberdade, perfazendo 580 dias de prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, Lula perdeu credenciais de interlocução com outros atores da cena que fazem oposição a Bolsonaro, ficando a sua liderança restrita ao petismo, onde ainda é a figura maior, até como reflexo da estratégia habilidosa que empreendeu para não fomentar sombras ao seu comando ou à sua hegemonia. Nesse ponto, Lula e o PT se confundem – nos acertos e nos graves erros cometidos ao longo da trajetória que se seguiu à fundação do Partido dos Trabalhadores nos redutos do ABC paulista.
Lula parece purgar o que se chama de “fadiga de material”, o equivalente ao doloroso desgaste da imagem aparentemente inabalável que ele julgara ter construído, minimizando ou ignorando os escândalos do mensalão e do petrolão, que feriram fundo a ética de uma legenda anunciada no nascedouro como diferente, passando pelo episódio do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Já nesse episódio Lula e o PT cometeram um erro de cálculo de grande proporção por apostarem que resultaria uma atmosfera de comoção, desencadeando manifestações de rua emblemáticas de protesto contra o impedimento da ex-mandatária. Em pouco tempo deu-se a prisão do próprio Lula, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Este foi o golpe maior, que os petistas engoliram em seco, prevendo a dificuldade para reerguer o crédito de confiança duramente amealhado e que rendeu passagem de quase duas décadas do PT pelo poder.
Por mais que sejam controversas as denúncias formuladas contra o ex-presidente da República, são igualmente frágeis, em alguns casos inconsistentes, os álibis de defesa apresentados por Lula da Silva e seus apoiadores, insuficientes para um juízo com tom de veredicto que favorecesse a cantilena da inocência alardeada de dentro da cela da PF e em depoimentos à Justiça. O PT nivelou-se aos chamados partidos tradicionais que tanto criticava no campo da moral e dos bons costumes, chafurdando na lama sem dó nem piedade, numa cruzada deletéria que não atingiu apenas Lula, mas outros condestáveis da agremiação, a exemplo de ex-ministros como José Dirceu e Antonio Palocci. Já no caso do mensalão, Da Silva tentou forçar a absorção de que ele era inocente por não saber de nada, como se o “pajé” não tivesse conhecimento e/ou participação na compra de apoio político ao governo por parte de deputados e senadores de diferentes legendas que constituíam a base de sustentação do lulopetismo no poder. Hoje o PT é estigmatizado pela corrupção, enquanto Bolsonaro, por ironia, canaliza o antipetismo remanescente da história política recente do país.
No impeachment da ex-presidente Dilma, a estratégia concebida por Lula da Silva foi a de apresentá-lo como “golpe”, o que não motivou nem mesmo o grosso da militância petista mais ortodoxa, em si mesmo desmobilizada por Lula e sua sucessora quando estiveram à frente do poder, mediante a outorga de favores e outros penduricalhos. Dilma, de resto, não empolgou o PT quando se encontrava na presidência da República, por ter dificultado canais de acesso das hostes petistas ávidas por mais espaços dentro do “projeto de poder” que parecia tendente a se eternizar, independente de consulta aos humores da opinião pública, via de regra oscilantes. Na atual conjuntura, Dilma não tem qualquer papel de protagonismo dentro do PT. E, com Lula solto, as chances são cada vez menores, mais remotas.
Se o ex-presidente, a quem ainda se atribui nesga de carisma popular, aparenta estar no limbo, imagine-se o que não ocorre com Dilma, a “Mãe do PAC”, a invenção de que Lula se socorreu para tentar dar continuidade ao ambicioso projeto de poder inaugurado com sua ascensão ao Palácio do Planalto em 2002. Quanto a Lula, sua situação só tem piorado, já em liberdade, com o besteirol que desanda a cometer. Assim foi com a frase infeliz de que “ainda bem que veio esse monstro (coronavírus) para mostrar a importância do Estado no contexto social brasileiro”. O ex-presidente bem que tentou se corrigir, atribuindo-se infelicidade de expressão. Mas foi perda de tempo porque a frase desgraçada entrou para os anais, estigmatizando o autor.
Lula caminha para constatar que seu ciclo está se esgotando. Pessoalmente ele pode manter uma sobrevida política, mas sem a aura que parecia imantá-lo na galeria dos líderes de expressão da história brasileira. Há sinais de ocaso melancólico, protagonizado pelo próprio Lula da Silva e suas circunstâncias, como na definição de Ortega & Gasset.