Nonato Guedes
A propósito de crises que têm se sucedido na conjuntura brasileira, opondo o presidente Jair Bolsonaro ora ao Legislativo, ora ao Judiciário, cabe mencionar que tudo seria mais facilmente administrável se os donos do poder consultassem mais, e fizessem a leitura correta, apropriada, do “livrinho”. Que era como o general Eurico Gaspar Dutra, presidente da República de 1946 a 1951, denominava a Constituição, que é a Carta Magna. O folclore político registra que sempre que era acionado para tomar alguma medida ou editar alguma lei, Dutra indagava a seus interlocutores: “O que é que diz o livrinho?”. Hoje, com o Brasil vivendo uma situação estressante, ninguém pergunta o que diz o “livrinho”.
O militar que empalmou o primeiro governo do período democrático aberto em 46, imediatamente após a queda do Estado Novo (a ditadura de Getúlio Vargas), não era exatamente o modelo perfeito de democrata.Foi o candidato de Getúlio pelo PSD, tendo como principal adversário o brigadeiro Eduardo Gomes num pleito em que o Partido Comunista Brasileiro compareceu com a candidatura de Yeddo Fiúza. Deu-se que em pleno governo Dutra a Justiça cassou o registro do Partido Comunista – e o militar-presidente limitou-se a acompanhar os fatos, sem qualquer inflexão acerca da violência cometida. Foram os liberais que se manifestaram em protesto, ficando célebre o discurso da “cadeira vazia” pronunciado pelo senador paraibano José Américo de Almeida, sobre a cassação do mandato de Luís Carlos Prestes. José Américo foi autor, também, da entrevista ao “Correio da Manhã” que derrubou a censura de Vargas, então institucionalizada.
Dutra proibiu o jogo e o funcionamento dos cassinos e, de concreto, em termos positivos, além de empreendimentos vultuosos de infraestrutura, realizou uma grande campanha de alfabetização de adultos, que foi considerada pela Unesco como uma das maiores do mundo. Consta que depois de entregar o cargo, concluído seu único mandato, Gaspar Dutra afastou-se da atividade política. Em 1964, apoiou a deposição de João Goulart, que havia se investido com a renúncia de Jânio Quadros, e chegou a ter o seu nome articulado para assumir a presidência, que acabou sendo ocupada por Castello Branco. Seja como for, Dutra ficou famoso pela lenda sobre o “livrinho”, que, para alguns historiadores, exprimia uma posição legalista. Há uma frase emblemática de Dutra, que vale ser reproduzida na íntegra:
– Preocupado em corresponder à expectativa dos meus compatriotas, comprometo-me a manter, em tudo a mim depender, o sistema o sistema democrático que resultar das deliberações da Assembleia Nacional, sem o menor cerceamento das liberdades públicas, inseparáveis de um regime de opinião. Afirmo o propósito de receber com simpatia as sugestões que venham de qualquer setor, decidido a concorrer para uma obra de estreita e proveitosa cooperação entre o povo e o governo, num clima de ordem moral e material, indispensável ao trabalho fecundo. Soldado, subindo ao poder, como simples cidadão, espero em Deus as forças necessárias para fazer um governo civil, honesto e útil, ao meu país, um governo que possa corresponder às aspirações.
Dutra morreu em 1974 no Rio de Janeiro aos 91 anos, adicionando à sua biografia registro de longevidade no histórico dos presidentes da República. Não é um dos ídolos do atual presidente Jair Bolsonaro, que é capitão e chegou ao poder pelo voto, mas insiste em autogolpe para obter poderes ditatoriais a fim de atender a seus interesses personalistas e ambições carreiristas. Bolsonaro governa sob a égide de uma Constituição que refundou o Brasil Democrático depois de 21 anos de ditadura militar. É um texto que tem suas falhas e omissões e que tem sofrido alterações pontuais, preservando, na essência, valores democráticos. Afinal, como denominou o doutor Ulysses Guimarães, é uma Constituição-Cidadã. “Não é perfeita (….) Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”, acrescentou Ulysses Guimarães, em instante particularmente emocionante da história política-institucional brasileira.
É a Constituição pela qual devem zelar o presidente da República, o presidente do Supremo Tribunal Federal, o presidente do Senado e o presidente da Câmara dos Deputados. E é lamentável – mais do que isso, deplorável, constatar que vive-se uma atmosfera estressante, como chegou a ser qualificada pelo vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. É estressante porque Bolsonaro aposta o tempo todo na tensão – e os dirigentes de outros Poderes reagem fazendo justamente o seu jogo. Ninguém se lembra de consultar o “livrinho” para saber o que é que ele diz em épocas históricas anormais, pautadas pela radicalização cega que só piora as coisas em meio à pandemia do coronavírus. Leiam o “livrinho”, senhores! E cumpram o que o “livrinho” determina!