Nonato Guedes
Na noite de quinta-feira morreu aos 60 anos em João Pessoa, vítima de covid 19, Assis Nóbrega, um optometrista, natural da cidade de Sousa, que se notabilizou por encampar e liderar trabalhos voluntários que exprimiam gestos de candente solidariedade humana, de plantio de mudas a coleta de sangue, arrecadação de muletas, cadeira de rodas, computadores. Sua ação de maior repercussão foi o projeto “Natal sem Fome”, idealizado pelo sociólogo mineiro Herbert de Souza, o “Betinho”, irmão do cartunista Henfil, que faleceu em 1997. O “Natal sem Fome” tocado por “Betinho” fazia parte da Ação da Cidadania contra a fome, a miséria e pela vida, que deflagrou inúmeras campanhas de arrecadação de mantimentos que eram distribuídos com os pobres e excluídos.
A Ação da Cidadania constituiu uma das mais marcantes iniciativas desencadeadas à margem do Estado e atraindo voluntários desejosos de oferecer parcela de contribuição para minorar o sofrimento de camadas marginalizadas num país pontilhado de desigualdades e disparidades inter-regionais. É fundamental esclarecer que mobilização de tamanha envergadura não entrou no rol de ações de promoção meramente assistencialista, tanto que se credenciou a premiações internacionais como legítimo reconhecimento à sua oportunidade e eficácia em determinadas conjunturas. Não sendo um projeto político-partidário-eleitoreiro, não visava a substituir o papel do Estado, a quem cabe patrocinar o bem-estar coletivo. Teve, entretanto, um conteúdo pedagógico no sentido de alertar o próprio Estado e, em paralelo, as elites sociais, sobre a omissão que estavam cometendo diante de flagrantes injustiças que clamavam por atenção e solução.
“Betinho” não logrou impedir que em torno de sua figura se criasse uma aura mística, que valeu não para conquistar votos, mas para angariar credibilidade e para dar força às mobilizações diretamente coordenadas por segmentos da própria comunidade, preferencialmente nos chamados bolsões de pobreza que ainda hoje se espalham por periferias e grotões deste imenso País. A mola propulsora do seu trabalho foi a criação, na volta do exílio, de um instituto de Estudos e Análises Sociológicas sobre a complexa realidade brasileira. Na década de 60, “Betinho” ajudara a fundar a AP, Ação Popular, movimento que lutava pela implantação do socialismo em nosso País. Ele foi um dos perseguidos pela ditadura militar instaurada em 64, tendo enfrentado a clandestinidade e o exílio, do qual retornou em 79 nas asas da anistia. Enfronhado na análise da situação de atraso a que o Brasil estava submetido, arregaçou as mangas para fazer sua parte. E é fato que gerou embriões de inspiração em diferentes Estados e países.
Da mesma forma que “Betinho” se tornou um interlocutor de demandas populares, auscultado pelos mais diversos fóruns que eram constantemente provocados a repassar seu quinhão de colaboração na luta contra as desigualdades, Assis Nóbrega, um dos seus discípulos, percorreu regiões da Paraíba engajado no projeto de acudir milhares de pessoas pobres. Essa era a essência do “Natal sem Fome”, que tanto em João Pessoa como em cidades do interior foi saudado como mecanismo relevante de apoio social. Tratava-se de um trabalho de arrecadação que perdurava pelo ano inteiro e que ganhava visibilidade no período natalino, época geralmente propícia à conciliação, ao desarmamento de espíritos e à proliferação de gestos de generosidade. Havia uma razão muito forte por trás da dedicação de Assis Nóbrega a esse mutirão: ele e familiares foram vítimas da fome, sentiram na pele o que é não ter o que comer. Essa compreensão nítida ultrapassava quaisquer formulações sociológicas, como deixou claro o próprio “Betinho” numa de suas advertências acerca da premência de se alimentar os pobres.
Ainda bem que, de forma cíclica, temos pessoas como “Betinho” e Assis Nóbrega, que são agentes decisivos para despertar consciências eventualmente entorpecidas ou completamente diluídas em meio a posturas de egoísmo, de falta de solidariedade ou de indiferentismo para com as mazelas do mundo, muitas das quais nós mesmos estimulamos, direta ou indiretamente. Tais personagens prestam um serviço inestimável de evangelização, sem necessariamente estar atrelados a instituições religiosas, da mesma forma como não se vinculam diretamente ao Estado, senão para pressioná-lo a cumprir suas obrigações. E se eternizam na história do povo. São ativistas que surgem do anonimato como porta-vozes de mensagens destinadas a agitar a sensibilidade de quem tem o poder de modificar situações injustas ou arbitrárias. Integram, por assim dizer, um agrupamento especial – o dos que se atribuem responsabilidades por autoconsciência, não por cobrança ou patrulhamento de segmentos da sociedade.