Nonato Guedes
Muitos de nós, jornalistas, ficamos órfãos com a partida de Gilberto Dimenstein, um dos mais lúcidos articulistas da história da imprensa brasileira, com carreira assinalada no jornal Folha de S. Paulo, onde atuou por 28 anos, tendo sido, também, comentarista da rádio CBN. Criou o portal Catraca Livre quando sentiu a necessidade de agrupar em uma única plataforma os eventos culturais gratuitos da cidade de São Paulo. Foi vencedor de dois Prêmios Esso de Jornalismo – em 1988, na categoria Principal, com a reportagem “A Lista da Fisiologia” e, no ano seguinte, na categoria Informação Política com “O Grande Golpe”. Ganhou, também, o Prêmio Jabuti de Literatura de Melhor Livro de Não-Ficção em 1993 com “O Cidadão de Papel”.
“Catraca Livre” observou, a propósito de sua morte, vitimado por um câncer: “Dimenstein inspirou uma legião de jornalistas, educadores e comunicadores, ávidos por Justiça, por verdade e por conhecimento”. A jornalista Natália Portinari definiu: “Muitos o associam a uma cobertura de esquerda e combativa, que, de fato, gostava de fazer, mas Dimenstein transcende isso: foi um dos maiores repórteres de política de sua geração, trouxe à tona escândalos, ajudou a melhorar nosso país”. Filio-me à corrente de opinião integrada por Natália. Dimenstein tinha um senso de profissionalismo incrível, invejável, abstraindo tendências ideológicas. Essa noção, pautada por sentimentos de cidadania, o alistou no front do jornalismo investigativo, quando este se fez necessário “com urgência” em missões de defesa da democracia, dos direitos humanos.
É uma pena que Dimenstein não tenha vindo palestrar para jornalistas paraibanos nos tempos memoráveis em que a Associação Paraibana de Imprensa, API, pôs-se na vanguarda do debate sobre conjunturas vivenciadas no Brasil. Quando fui vice-presidente da entidade, na gestão titulada por Severino Ramos, organizei um seminário que trouxe para o auditório da Visconde de Pelotas nomes consagrados como Carlos Chagas, de “O Estado de S. Paulo”, Hélio Doyle, da “Veja”, Gerardo Mello Mourão, articulista da “Folha de S. Paulo”, Tarcísio Holanda, do “Correio Braziliense”. Antes já havia estado por aqui Boris Casoy, que, na época, pontificava na coluna “Painel”, da Folha, e na editoria do jornal dos Frias. Sei das gestões para trazer Marcos Sá Corrêa, Villasbôas Corrêa, até mesmo Carlos Castello Branco, o “Castellinho”, que acabou vindo como acompanhante da mulher, a Sra. Élvia, então participante de um conclave de tribunais de contas em João Pessoa e foi recepcionado na casa do conselheiro e poeta Luiz Nunes, o Severino Sertanejo, numa tarde regada a whisky e ovada de curimatã. E houve presidentes, como este escriba, Carlos Aranha, Rubens Nóbrega, Walter Santos, José Euflávio, Antônio Costa, Nonato Bandeira, que se preocuparam com uma API debatedora, papel que há muito ela já não desempenha. As passagens de Moacir Japiassu e Freitas Neto por aqui sempre eram instigantes.
Voltando a Dimenstein: além de se enfronhar na cobertura política, ele era um batalhador da causa da educação, um defensor da universidade pública, o que conferia ao seu perfil uma densidade mais abrangente. E, pessoalmente, também era extremamente ético. Em plena pandemia do coronavírus, mesmo sofrendo duplamente, com o agravamento do câncer, ele procurou dar o exemplo no portal Catraca Livre, de que era fundador e proprietário: abriu mão de 100% dos seus rendimentos para evitar demissão de funcionários. E explicou: “Não é heroísmo. Consigo viver muito bem com minha aposentadoria. O que é difícil viver sem é da companhia de profissionais dedicados e competentes, alinhados com a visão do site deque nossa missão é fazer um mundo melhor”. Eis aí um homem ético, que achava que o exemplo vinha de cima e que gostava de se cercar de talentos, nutrindo, presumivelmente, certo pavor pela mediocridade.
Sim! Dimenstein era um crítico contumaz do governo Bolsonaro e da figurado presidente Jair. Em editorial do “Catraca Livre” chegou a endossar o termo “bolsonarice” – mistura de Bolsonaro com Tolice, criado por Merval Pereira, para opinar que estávamos diante de uma tragédia nacional. Assim traduziu a tal tragédia: “Bolsonaro é ignorante em ciências, prefere acreditar em teorias conspiratórias, ou seja, Bolsonarice. Não existe aquecimento global, segundo ele. Tirar os radares das estradas não ameaça vidas. Daí se pode entender que ele não compreenda a importância do isolamento para combater o coronavírus. Nem depois da mudança de opinião de Trump ou dos rabinos ultra-ortodoxos de Israel. Bolsonaro não analisa evidências, fatos, mas apenas suposições saídas de sua cabeça. A Catraca Livre se posiciona absolutamente contra pronunciamento de Jair Bolsonaro em rede nacional. O presidente do Brasil está na contramão das recomendações da Organização Mundial da Saúde e das atitudes de praticamente todos os outros chefes de Estado do mundo. Uma afronta aos brasileiros, sejam eles apoiadores ou não de seu governo. Bolsonaro coloca em risco a vida de milhões de brasileiros, justamente no momento em que mais precisamos de um LÍDER”.
Pobre Brasil! Sem um LÍDER. E sem cabeças pensantes privilegiadas como a de Gilberto Dimenstein! Pensando bem: não fomos apenas nós, jornalistas, que ficamos órfãos com a partida de Dimenstein. Foram gerações de leitores que primam pela boa informação, pelo conhecimento que faz crescer!