Nonato Guedes
O escritor Frei Betto, autor de livros de repercussão, escreveu um artigo intitulado “Não posso respirar”, uma analogia às últimas palavras de George Floyd, cuja morte por policiais nos Estados Unidos desencadeou onda de protestos em todo o mundo. Frei Betto diz que também não consegue respirar, “neste Brasil (des)governado por militares que ameaçam as instituições democráticas e exaltam o golpe de Estado de 1964”, responsável, conforme ele, pela implantação de 21 anos de ditadura, e, além do mais, “elogiam torturadores e milicianos; acertam o ‘toma lá, dá cá’ com notórios corruptos do Centrão; plagiam ostensivamente os nazistas; manipulam símbolos judaicos; tramam, em reuniões ministeriais, agir ao arrepio da lei; proferem palavrões em reuniões oficiais, como se estivessem num antro de facínoras; debocham de quem observa os protocolos de prevenção à pandemia e saem às ruas, indiferentes aos 30 mil mortos e suas famílias, como a celebrar tamanha letalidade”.
O artigo, reproduzido em sites como “Revista Forum”, prossegue invocando a frase de George Floyd que equivalia a um pedido de socorro: “Não posso respirar” quando vejo a democracia asfixiada; a Polícia Militar proteger neofascistas e atacar quem defende a democracia; o presidente mais interessado em liberar armas e munições que recursos para combater a pandemia; o ministério da Educação dirigido por um semianalfabeto que ameaça reprisar a “noite dos cristais” dos nazistas, proclama odiar povos indígenas e propõe prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. “Não posso respirar” ao ver os comandantes das Forças Armadas calados diante de um presidente destemperado que não esconde ter como prioridade de governo a sua proteção e a de seus filhos, todos suspeitos de graves crimes e cumplicidade com assassinos profissionais.
Ainda Frei Betto: “Não posso respirar” diante da inércia dos partidos ditos progressistas, enquanto a sociedade civil se mobiliza em contundentes manifestos de indignação e pela defesa da democracia; “Não posso respirar” diante desse empresariado que, de olho nos lucros e indiferente às vítimas da pandemia, pressiona para a abertura imediata de seus negócios, enquanto os leitos hospitalares estão lotados e covas rasas se multiplicam nos cemitérios quais gengivas desdentadas de Tânatos; “Não posso respirar” quando, no Brasil e nos Estados Unidos, cidadãos são agredidos, presos, torturados e assassinados pelo “crime” de serem negros e, portanto, “suspeitos”. Falta-me ar ao ver João Pedro, um garoto de 14 anos, perder a vida dentro de casa ao levar um tiro de fuzil pelas costas, enquanto brincava com amigos. Os entregadores de encomendas serem assassinados por policiais que nos consideram imbecis ao tentar justificar a morte de tantos civis desarmados.
Diz Frei Betto: “Não posso respirar” ao pensar que o bárbaro crime cometido contra George Floyd se repete todos os dias e (estes) permanecem impunes por não haver ali uma câmera capaz de flagrar assassinatos semelhantes. Ou ao ver Trump (Donald Trump, presidente dos EUA), do alto de sua arrogância, reagir aos protestos antirracistas ameaçando calar os manifestantes com o indiciamento deles como terroristas e a intervenção de tropas do Exército”. E indaga: Como oxigenar minha cidadania, meu espírito democrático, minha tolerância, ao me ver cercado por mimólogos da KuKluxKlan; generais improvisados em ministros da Saúde em plena tragédia sanitária; manifestantes infringirem, impunes, a lei de segurança nacional; e a Bolsa de Valores subir, enquanto milhares de caixões baixam nas tumbas que recebem as vítimas da pandemia?”.
Frei Betto alerta que precisa respirar, “não deixar que sufoquem a sociedade civil, a mídia, a liberdade de expressão, a arte, os direitos civis, o futuro dessa geração condenada a viver esse presente nefasto”. E adianta: “Respiro, apesar de tudo, quando leio que o estilista Marc Jacobs postou no Instagram, depois de ter uma de suas lojas destruída pelos protestos em Los Angeles: “Nunca deixe que eles te convençam que vidro quebrado ou saque é violência. Fome é violência. Morar na rua é violência. Guerra é violência. Jogar bomba nas pessoas é violência. Racismo é violência. Supremacia branca é violência. Nenhum cuidado de saúde é violência. Pobreza é violência. Contaminar fontes de água para obter lucro é violência. Uma propriedade pode ser recuperada, vidas não”. E Frei Betto invoca, no epílogo de seu libelo tão oportuno e tão conscientizador, os versos de Cora Coralina, que dizem: “quero mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros”.
Obrigado, Frei Betto, por nos abrir os olhos para reagirmos contra as insanidades que tomam conta do Brasil e do mundo!!!