Nonato Guedes
Em junho de 1975, na condição de presidente nacional do MDB, o saudoso deputado Ulysses Guimarães defendeu uma proposta de reforma constitucional que, entre outros pontos, valorizava a Federação e o município. Na época vigorava a ditadura militar e o doutor Ulysses dizia que o Brasil era uma República quase unitária apelidada de Federação, com a indicação dos governadores pelo presidente da República e a cassação da autonomia das capitais e de dezenas de municípios. Pregava que a autonomia dos Estados e municípios, por meio de eleições livres e escoimada de discriminações, era a única forma de viabilizar politicamente a Federação. Para além disso o doutor Ulysses preconizava “descentralização” e “suficiência financeira” como indispensáveis a um federalismo real e não apenas formal.
No capítulo da descentralização, o dirigente nacional das oposições afirmava que a indicação de gestores sem poderes para dar respostas aos assuntos regionais ou locais, sem recursos próprios e bastantes, equivalia a rebaixar os Estados e municípios a “pensionistas da União”. E emendava que era isto que então ocorria no país. Daí porque sua proposta pugnava uma reforma estrutural, revolucionária, que implicasse no reconhecimento, pela Constituição, de categoria política, administrativa e financeira aos municípios. De lá para cá, evidentemente, muita coisa mudou. Já uma década depois da proposta de doutor Ulysses ocorriam eleições diretas para prefeitos de Capitais, fechando-se o ciclo das nomeações biônicas, como eram chamadas. Em 88 coroou-se a Constituição Cidadã, com mudanças substanciais na estrutura da Federação. Sucessivamente, emendas e propostas focadas na Lei Maior reforçaram a autonomia de Estados e municípios, sobretudo do ponto de vista financeiro.
A distribuição dos recursos entre a União e os entes federados tornou-se mais democrática, o que conferiu importância ao processo político materializado na escolha dos prefeitos de Capitais pelo voto secreto e direto. Ainda agora, na pandemia do novo coronavírus, constata-se a liberdade que prefeitos de municípios em diferentes regiões do país estão tendo para decretar medidas de interesse público, tanto em relação ao aparelhamento da estrutura de Saúde Pública para atender aos desafios impostos pela Covid-19, como em relação à reabertura do comércio e de outras atividades empresariais essenciais. O que se observa é que a Federação pleiteada pelo doutor Ulysses Guimarães deixou de ser letra morta no texto da Lei e passou a virar realidade. O que condiciona os prefeitos no enfrentamento da crise sanitária é a obediência a princípios como legalidade e transparência na aplicação de recursos que estão sendo destinadas por variadas fontes para o enfrentamento ao novo coronavírus. Porque, como se sabe, a corrupção, infelizmente, não pode ser banida por decreto.
Ulysses, em explanação lapidar na sua proposta, cuidava de deixar claro que administração não deve ser privilégio de prefeitos e vereadores. Por isso, preconizava: “É necessário que seja acionada e vigiada por corporações espontâneas, não remuneradas, do tipo das Associações de Amigos de Bairro. Semelhantes entidades devem ser estimuladas, dando-lhes o poder de iniciativa de projetos a serem apresentados às Câmaras Municipais com número de assinaturas que abone sua representatividade”. É possível traduzir, a dados de hoje, aquela percepção do doutor Ulysses como um chamado ao fortalecimento das entidades representativas da sociedade civil, que foi o que aconteceu ao longo dos anos na história brasileira, em paralelo com a criação de organismos de controle e fiscalização das verbas públicas. Este último ponto oficializou, em tese, o princípio da transparência, da prestação de contas, que deve ser inerente à administração pública.
O “Senhor Diretas” ou “Senhor Constituição”, como Ulysses Guimarães também era chamado, interpretava o municipalismo como a participação dos cidadãos na solução dos problemas do lugar onde moram e trabalham. “É a maternidade de líderes. A administração municipal enxerga os problemas porque são vizinhos, vê as aflições do povo porque com ele convive. Naturalmente credenciada para planificar o espaço, desafio moderno da explosão urbana, para que o “verde social” não seja devastado pela construção e a poluição do ar, da água, pelo som e a visual não acarretem o “over kill”, matando mais do que as guerras”.
Ulysses Guimarães pregava a vitória da qualidade de vida contra o PIB dos tecnocratas, obtida pelos cidadãos em condições de conquista-la. E, no arremate magistral: “O município é a eliminação de distâncias políticas, administrativas, sociais, é a administração próxima dos fatos. Onde está o homem, estará o governo, para solução dos problemas locais”. Tão aparentemente simples e tão atualíssimo, especialmente para este ano singular que prevê nova rodada de eleições municipais para escolha de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores, em plena temporada em que a transparência é condição sine qua non para carimbar passaportes de políticos que ambicionam o poder.