Nonato Guedes
Uma detalhada reportagem do UOL reconstituiu episódio que era do conhecimento de alguns jornalistas e historiadores: nos anos 1970, a ditadura militar que havia se instalado no Brasil tentou camuflar uma epidemia de meningite que se espalhou pelo país. Os militares não queriam causar alarme nem ferir a imagem do governoem pleno “milagre econômico”. O texto do repórter Carlos Madeiro revela documentos comprobatórios de que o regime militar, além de ocultar fatos, perseguiu pessoas. De concreto, o número de casos e mortes até hoje não é conhecido. A matéria é oportuna porque na conjuntura atual o ex-capitão Jair Bolsonaro, embora eleito pelo voto direto, tenta manipular percentuais de contaminação pela Covid-19 e assume ostensivamente postura negacionista em relação à pandemia do coronavírus, tendo já demitido dois ministros da Saúde que ousaram trabalhar antenados com a Ciência e com a verdade. Pelo que se depreende, Bolsonaro tenta reeditar a censura que imperava na longa noite das trevas.
Carlos Madeiro recorda que a epidemia de meningite superlotou hospitais, cancelou eventos e fez com que muitos brasileiros perdessem a vida. Conforme documentos do Arquivo Nacional, o regime militar atuou não só para censurar os veículos de comunicação, como também espionou, perseguiu e até deu ordens para que pessoas que estavam informando a população sobre a doença fossem investigadas. Os papéis confidenciais sinalizam que apesar da “operação-despistamento” a gravidade do problema era conhecida da cúpula do governo. Em um informe de 31 de julho de 1974, o Serviço Nacional de Informações (SNI) comunicou ao então presidente, o general Ernesto Geisel, que a epidemia teria começado com um surto em Osasco, na Grande São Paulo e se alastrado pelo país, ocasionando sérias consequências.
O texto do SNI frisava: “Sabe-se de sobejo que o alastramento do mal encontra campo propício em aglomerados populacionais, nos ambientes de pouca higiene e na estação invernal. Nessas condições, a cidade de São Paulo é um ambiente ideal, sabendo-se que a cidade não é servida de esgotos em dois terços de sua área e 50% da população não é servida por rede de água. Acresce dizer que o clima de São Paulo, frio e úmido, no inverno, concorre, juntamente com a enorme população, de forma decisiva para o desenvolvimento epidêmico”. O informe explicitou também que se não fossem tomadas medidas preventivas em São Paulo “pode-se prever que anualmente a cidade será atormentada pela incidência dessa doença”. Entretanto, alertava que isso teria reflexos negativos no curso da campanha eleitoral que se iniciaria. Face à constatação e, com a eleição daquele ano, o documento finaliza alertando que o momento político poderia ser desestabilizado por oposicionistas, padres progressistas e imprensa, “gerando sérios inconvenientes à política do governo federal”.
Apesar da ciência da gravidade, durante quase todo o período o governo manteve uma proibição da divulgação dos dados. Um outro documento, divulgado pelo historiador Lucas Pedretti, também recuperado do Arquivo Nacional, é a cópia de um radiograma do dia 30 de julho de 1974 em que o então diretor da Polícia Federal, Moacyr Coelho, diz que deve ser seguida a ordem de manter proibida a divulgação de “dados numéricos e gráficos sobre a meningite”. Pedretti dá conta que um dos problemas encontrados nas pesquisas de documentos da época da ditadura foi que boa parte dos arquivos havia sido destruída. Na pesquisa sobre meningite, ele achou uma lista de papéis destruídos pelos militares em que constava um intitulado “campanha de difamação surto de meningite”. Para Pedretti, “o nome é bem sugestivo”.
Num outro radiograma de 74 o então chefe da PF “libera” notícias mas proíbe “dados e notícias tendenciosas que alarmem a população”. O historiador pondera: “Nem sei se diria que foi uma amenização na ordem de proibição. É praticamente como se eles estivessem falando para dar os números de pessoas que estão sobrevivendo, tipo um ‘placar da vida’, mas que não poderia falar o número de pessoas que estava morrendo ou de pessoas infectadas. No caso atual, o presidente Jair Bolsonaro, cujo governo demonstrou despreparo para o enfrentamento ao novo coronavírus, lança mão, diariamente, de “casos descartados” e de supostas pessoas recuperadas para minimizar o alastramento de Covid-19. O resultado é uma grande confusão porque veículos de imprensa que integram a mídia independente formaram um consórcio que informa números conflitantes com os do governo, obtidos diariamente junto a secretarias de Saúde estaduais. Pelo menos, a mídia paralela à do governo desmascara versões oficiais negacionistas ou minimizadoras da verdade.
O número de casos e mortes na epidemia de meningite ainda hoje é tido como incerto. Um estudo a que se referiu a BBC Brasil aponta que no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, teriam sido registrados 19,9 mil casos da doença e 1.600 óbitos. Já a edição de 30 de dezembro do jornal O Globo divulgou que só naquele ano a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2.500 em São Paulo. Uma lição que fica e na qualo governo Bolsonaro nem de longe quer se espelhar é a de que a mentira não tem o condão de suprimir a realidade ou as evidências. Não é à toa que a imagem do governo Bolsonaro no exterior é uma das piores de toda a história do Brasil.