Isolado desde fins de março em Petrópolis, na região serrana vizinha ao Rio, por causa da pandemia do coronavírus, e sem ter a perspectiva de quando poderá voltar para casa, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Holanda completou 76 anos de idade no meio de uma crise que encobre todo o país mas celebrado em redes sociais e meios de comunicação pela sua contribuição valiosa à história do Brasil. Ele será o padrinho do novo casamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a socióloga Rosângela da Silva (Janja), em data ainda não anunciada, conforme ela deixou escapar em mensagem de parabéns a Buarque. O cantor é amigo pessoal de Lula e foi um dos expoentes da campanha pela soltura do ex-presidente, o que aconteceu após 580 dias de prisão na Polícia Federal em Curitiba.
Em texto especialmente escrito para “O Estado de S. Paulo”, o escritor e jornalista Eric Nepomuceno explica que Chico está longe dos fãs mas perto dos problemas nacionais. Diz que ele teve dons proféticos e antecipou uma outra crise que se abate sobre o país – a que é provocada pelo aparecimento ruidoso de uma parcela da população (minoritária, por certo, mas nem por isso menos explosiva e ameaçadora) radicalizada, “uma extrema-direita como há muito não se via, insuflada pelo quadro político do autoritarismo saído das urnas, um fenômeno sem precedentes na história da República”. Eric lembra que em novembro do ano passado estava em Buenos Aires quando apareceu “Essa Gente”, o mais recente livro de Chico Buarque. “E recordo ter lido, nos jornais brasileiros, o trecho que sua editora adiantou para divulgação. Era aquele que retratava um escritor passando por severo aperto financeiro, sem conseguir escrever e implorando novos adiantamentos a seu editor. Brinquei com ele dizendo que nunca tinha pensado que um dia seria inspiração para um personagem de seu livro”, emendou.
Na volta ao Rio, Nepomuceno leu “Essa Gente” e conta que o impacto foi tremendo. “Mesclando humor, às vezes amargo humor, como forma de encarar a realidade, e uma espécie de estupefação pelo que via à sua volta, o personagem mostrava um país literalmente quebrado ao meio, uma cidade, o Rio, esvaindo-se em sangue. E enquanto a escrita segue deslizando com uma espécie de suavidade, áspera suavidade, o que ela mostra é um panorama tenebroso, violento, encobrindo o país, expondo o mergulho num beco que se tiver alguma saída ninguém vê”. Eric Nepomuceno comenta que Chico Buarque foi, desde sempre, um olhar atento sobre o Brasil, uma espécie de cronista das agruras e desesperanças, das esperas e expectativas do país.
– O mais assombroso do livro é ter sido escrito como um aviso agoniado de um fenômeno tenebroso que estava se insinuando no horizonte. As tensões e truculências que pretendiam, e ainda pretendem, rachar o país, se não ao meio, pelo menos de maneira severa, já haviam se instalado no ar. O próprio Chico foi alvo e vítima dessa fúria desembestada que até 2015 tinha permanecido abrigada em algum armário. O que não se podia prever, ou pouquíssima gente previu, foi o que viria depois até chegar ao que se vê hoje país afora: marés de fúria, de truculência, de desequilíbrio em todos os sentidos. Uma onda nefasta destruindo tudo, do meio-ambiente às artes e à cultura, da educação à imagem do país no resto do mundo, escancarando mais e mais as brutais diferenças sociais, espalhando, incitando violência. Lembro que na época do lançamento falou-se que “Essa Gente” continha uma espécie de sátira das classes dominantes neste país agora dominado pelo caos. Hoje sabemos que não, não era sátira: era advertência, um aviso dolorido, feito num tom de ácida amargura – compara Eric Nepomuceno.
E arremata o jornalista e escritor: “O país já estava cindido profundamente. Ameaçava afundar de maneira melancólica. A ameaça virou o que vemos aí, golpeando nosso futuro de maneira bestial. Nada pode ser mais agoniante que saber que o dia de hoje foi pior que o de ontem, e melhor que o de amanhã. Pois Chico Buarque soube antever essa agonia. Bem que tentou avisar”.