Nonato Guedes
Os nordestinos, mesmo os que não votaram ou não gostam do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem do PT, reconhecem que foi no governo do “pajé” petista que tomaram impulso as obras de transposição das águas do rio São Francisco, destinadas a interligar bacias e garantir água em regiões historicamente assoladas pelo fenômeno das secas. As gestões de Lula e Dilma Rousseff deram o pontapé e, diante da dimensão do projeto, ocorreram erros técnicos, atrasos e suspeitas de superfaturamento de serviços de infraestrutura. O mérito, perante a História, em todo caso, foi de Lula, não de Dom Pedro, em cujo reinado já despontavam estudos para a hercúlea tarefa.
Ontem, ao lado de deputados do Centrão – um agrupamento fisiológico que chantageia governos no Congresso em troca de cargos e de verbas – o presidente Jair Bolsonaro fez uma rápida passagem pelo Nordeste, indo a Salgueiro, Pernambuco, Juazeiro do Norte e Penaforte, no Ceará, para inaugurar parte do projeto deflagrado em 2007 no governo Lula. As agências de notícias não esqueceram de lembrar que o orçamento inicial da transposição era de cerca de R$ 5 bi e que agora a previsão é que, ao final de todo o projeto, o gasto seja em torno de R$ 12 bi. Bolsonaro parecia estar mais preocupado em tentar tomar “bandeiras” empalmadas por Lula do que em demonstrar atenção ao povo pobre do Nordeste. Tanto assim que se esmerou em gravar vídeos com políticos aliados e fazer fotografias ao lado de apoiadores.
A visita foi inusitada porque a prioridade máxima no Brasil está sendo o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus – quesito no qual o governo de Bolsonaro sofre restrições por parte de entidades como a Organização Mundial da Saúde, e também porque o tema da transposição havia, de certa forma, sumido de pauta ou da agenda das lideranças políticas da própria região. Bolsonaro programou-a agindo de acordo com seu “feeling” de político populista e como estratégia calculada para abafar manifestações de saudosismo da Era petista junto a um eleitorado cuja maioria renegou o então candidato outsider da disputa de 2018 contra Fernando Haddad, o alter-ego de Lula da Silva. Resta conferir se a alquimia pretendida por Bolsonaro para debelar a fidelidade a Lula vai se materializar. 2022, data de nova eleição presidencial, parece uma eternidade no calendário e há dúvidas sobradas se Lula poderá ou não, finalmente, voltar a lutar pelo que sempre foi sua ambição maior – a cadeira de presidente da República.
Numa das declarações que deixou escapar entre políticos e a roda de apoiadores do seu governo, Bolsonaro justificou que a inesperada visita ao Nordeste fazia parte da sua decisão, tornada pública, de não deixar obra inacabada, independente do período de governo em que tenha sido iniciada, desde que seja de alcance social indiscutível. Sabe-se que os governadores de Pernambuco e do Ceará, Paulo Câmara (PSB) e Camilo Santana (PT),respectivamente, foram convidados a prestigiar a passagem do presidente da República pela região mas se recusaram a participar de qualquer solenidade. O Planalto havia sugerido uma visita conjunta com Camilo ao local da obra ou pelo menos um encontro rápido no aeroporto em Juazeiro do Norte. Na quinta-feira, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, esteve com o governador Camilo Santana em Fortaleza e levou o convite de Bolsonaro.
A ausência – ou, como queiram – o boicote à visita presidencial pelos governadores do Ceará e de Pernambuco se deveu a dois fatores: a dedicação que as respectivas gestões estão dando ao enfrentamento ao coronavírus e uma atitude de represália para com Bolsonaro, diante de hostilidades constantes que ele tem dirigido a governadores, principalmente, nordestinos. Ressalte-se, por dever de justiça, que o governo do presidente, em si, não tem discriminado a região, e tem repassado regularmente recursos para projetos orçamentários, bem como recursos específicos constantes da rubrica do combate à Covid-19. Mas a tensão constante que Bolsonaro alimentou com os governadores, partindo para confrontos até mesmo em videoconferências com eles, entupiu canais de interlocução que poderiam facilitar um melhor entendimento institucional em proveito de um Plano Nacional de interesse coletivo.
Vale a pena um registro: na véspera da visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará, a frase “Quem despreza a vida não é bem-vindo ao Ceará” foi projetada em prédios e espaços em diversos bairros de Fortaleza por profissionais da Medicina que realizaram uma manifestação de protesto contra o governo federal e sua condução à frente da grave crise dessaúde pública, com mais de 55 mil óbitos pelo coronavírus. Mas a verdade é que, independente do barulho e da influência do lulopetismo no Nordeste, o território ainda é uma área difícil de ser conquistada ou catequisada pelo bolsonarismo, com todas as medidas assistencialistas que têm sido tomadas.