Nonato Guedes
A eleição da assistente social Luíza Erundina à prefeitura de São Paulo em 1988 foi um fato histórico no cenário político nacional por uma série de peculiaridades, resumidas assim: mulher, nordestina, filiada ao Partido dos Trabalhadores e candidata de oposição a esquemas políticos tradicionais, enfrentando estruturas poderosas. Paraibana da cidade de Uiraúna, no Alto Sertão, Luíza Erundina deu ao recém-criado PT, que ajudou a fundar em 1980, o seu primeiro grande trunfo eleitoral, conquistando a prefeitura de uma das mais importantes cidades da América Latina. Derrotou vários candidatos, o principal deles Paulo Maluf, criatura do regime militar que em 1978 alçara ao governo do Estado por via indireta e que tentou inutilmente ser presidente da República, quer pelo sistema indireto, quer pelo voto popular.
Além de Maluf concorreram à prefeitura de São Paulo naquele ano histórico nomes como José Serra e João Leiva, entre outros. Estava em jogo a sucessão de Jânio Quadros, que em 1985 lograra retornar pelo voto à atividade política depois da desastrada renúncia à presidência da República no fatídico 25 de agosto de 1961, que frustrou milhares de eleitores em todo o país e que dele exigiu malabarismo até os últimos dias de sua vida para tentar explicar o inexplicável, defender o indefensável. Jânio apoiou à sua sucessão em 88 Leiva, que foi lançado pelo então PMDB com o aval ostensivo do esquema do ex-governador Orestes Quércia, então aspirante a uma futura candidatura a presidente da República. Mas foi Maluf, pelo PDS, que, decididamente, polarizou com Erundina a disputa liquidada a 15 de novembro daquele ano, em turno único. A diferença girou em torno de 270 mil votos num universo de milhões de eleitores. Erundina teve como vice o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e o efeito colateral de sua vitória resultou na eleição de 18 vereadores pelo PT em São Paulo.
Diga-se, a bem da verdade, que a líder paraibana não era a candidata preferida da cúpula petista, capitaneada por Luiz Inácio Lula da Silva, que apostava fichas na candidatura de Plínio Arruda Sampaio, figura de raízes esquerdistas notórias e de grande conceito nos círculos políticos e intelectuais do Estado e de outros centros. Demonstrando garra e obstinação, Erundina submeteu-se a prévias internas (mecanismo adotado pelo PT para referendar candidaturas nos seus primórdios) e participou de debates que, em depoimento que formulou mais tarde, revelaram-se altamente politizados, com discussão proativa de pontos programáticos e de conceitos de gestão. Em certa medida, as discussões internas tiveram o significado de “vestibular” para o confronto que mais tarde Erundina enfrentaria perante adversários de peso, tanto dela como da legenda que ajudou a fundar. Teve dificuldades para mobilizar apoios à sua campanha dentro do próprio PT, compensando-se com o apoio de figuras históricas da esquerda como José Genoíno, que, posteriormente, veio a presidir nacionalmente o Partido dos Trabalhadores.
A pregação de Luíza Erundina na campanha, com inversão de prioridades por parte de gestões públicas e enfoque na incorporação de segmentos sociais marginalizados surpreendeu ao próprio PT, que ainda se mostrava em busca de uma identidade, engolfado por múltiplas tendências que acabaram dificultando uma ascensão mais rápida da legenda, juntamente com a praga do assembleísmo exaustivamente acionado “por dá cá aquela palha”, ou seja, para equacionar ou dirimir pequenas pendências de tão fácil consenso. Por trás da estratégia dominante no histórico de amadurecimento do PT estava a obsessão de demonstrar à sociedade que se tratava, realmente, de um partido diferente, capaz de operar transformações radicais na sociedade dentro do regime democrático. Nem Erundina nem ninguém podia imaginar, àquela altura, que o PT fosse dar no que deu, com os mensalões, petrolões, impeachment de Dilma, prisão de Lula, prisões de cabeças coroadas do “novo modelo” político-partidário que se anunciava.
Convém situar que a vitória da paraibana Luíza Erundina à prefeitura de São Paulo deu-se em conjunto com duas outras conquistas relevantes – a eleição de Olívio Dutra a prefeito de Porto Alegre e a de Víctor Buaiz a prefeito de Vitória, capital do Espírito Santo. Mas, indiscutivelmente, a mais importante, a mais emblemática vitória foi a de Luíza Erundina em São Paulo. Sua trajetória política fora da Paraíba, já em São Paulo, começou em 82 com a eleição a vereadora, graças a trabalho desenvolvido em áreas periféricas de São Paulo. Em 1985, Erundina foi candidata a vice-prefeita da capital paulista na chapa encabeçada por Eduardo Suplicy, pleito que, como se sabe, foi vencido por Jânio Quadros.
É uma pena que o PT de Lula não tenha oferecido respaldo à gestão de Luíza Erundina, que enfrentou um bombardeio intenso por parte dos adversários dela e do petismo, com derrotas de matérias na Câmara Municipal e ameaças de CPIs destinadas a fazer devassas na sua administração. Para se manter à frente do mandato conquistado arduamente nas urnas, a paraibana de Uiraúna socorreu-se do apoio de movimentos populares que havia procurado valorizar. Sua avaliação, contida em diversos depoimentos, é que, apesar dos percalços, a gestão foi exitosa. Pelo menos abriu espaço para a chegada gradativa do PT ao poder. Este, um mérito que nem o próprio Lula pode olvidar. “O PT achava que eu não ia dar conta do recado”, desabafou Erundina, numa entrevista. A frase resume tudo – e ajuda a entender os lances posteriores da paraibana, filiando-se ao PSB e, na sequência, ao PSOL. Luíza foi uma desbravadora, que ainda hoje se mantém coerente no universo político. Já o PT, mudou para pior.