Nonato Guedes
Informações sobre a saúde de presidentes da República constituem assuntos de interesse nacional e, por isso, devem ser repassadas à opinião pública com toda a transparência necessária. A História, infelizmente, mostra que nem sempre é assim. No período da ditadura militar (1964-1985), sobretudo na fase aguda do autoritarismo em que imperava a censura a meios de comunicação foi montada uma operação de guerra para esconder da sociedade que o presidente-marechal Arthur da Costa e Silva havia sofrido uma trombose e fora afastado do poder, substituído por uma Junta que entrou para o folclore como “Os Três Patetas”, na definição mórbida do doutor Ulysses Guimarães. O fato é que o marechal morreu no exercício do cargo e a Constituição foi rasgada ao não se dar posse ao vice, Pedro Aleixo, político de expressão nas Alterosas.
A mesma ditadura já havia proibido a imprensa de divulgar informações sobre um surto de meningite que se instalara no Brasil, a pretexto de não causar pânico nem fomentar instabilidade. Quando Fernando Collor de Mello foi presidente (o primeiro eleito pelo voto direto, em 89, após a ditadura abreviada em 85 com a eleição indireta de Tancredo Neves, que morreu antes de assumir e foi substituído por José Sarney) surgiram insinuações de que o mandatário estava com Aids, doença que infelicitou artistas e outras figuras públicas queridas e que era tratada, por desinformação, como estigma. Coube à atilada repórter paraibana Sônia Carneiro, do “Jornal do Brasil”, abordar Collor sobre o tema-tabu numa entrevista coletiva. “Presidente, o senhor está com Aids?”, indagou Sônia, indo direto ao ponto. “Que é isso, Soninha?”, reagiu um Collor estupefato. As suspeitas não foram confirmadas – haviam tido origem no abatimento do presidente, conhecido pelo porte atlético que lhe valeu o apelido de “Indiana Jones tupiniquim”.
No início da Velha República, nos anos 1900, o presidente Rodrigues Alves morreu a caminho da posse no segundo mandato vítima de gripe espanhola. Em 1954, o país ficou traumatizado com o tiro no peito disparado pelo presidente Getúlio Vargas no Palácio do Catete, encharcado pela ruidosa Carta-Testamento que ele legou à população denunciando estar sendo acossado por forças terríveis que supostamente conspiravam para derrubá-lo do poder devido a interesses contrariados. Na fase de transição para a democracia em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves causou perplexidade e comoção quando foi internado às pressas em Brasília, poucos dias antes de ser investido no cargo. Tancredo experimentou uma verdadeira via crúcis, entremeada por boletins médicos desencontrados sobre seu estado de saúde e pela espetacularização de uma tragédia patrocinada por médicos ávidos por notoriedade, como um certo “professor doutor Henrique Walter Pinotti”. Era assim que ele se identificava no sobrescrito dos boletins que o jornalista Antônio Britto, assessor de imprensa de Tancredo, reproduzia aos colegas de jornais, emissoras de rádio e televisão.
A agonia do doutor Tancredo foi superdimensionada não apenas pela sucessão de erros médicos e pela contradição na divulgação de informações extraídas dos boletins oficiais, mas por um fator excepcional que estava em jogo: a sorte da incipiente democracia brasileira. Havia o receio de que em caso de impedimento da posse de Tancredo os militares, que estavam nos estertores do ciclo de poder, tentassem esticar a corda para prolongar a hegemonia no poder. Esse prognóstico era agravado pelo sentimento de repulsa de generais ao vice José Sarney, tido como “traidor” por ter se aliado a Tancredo e a dissidentes do regime na arquitetura para edificação da chamada “Nova República”. Os arreganhos de militares como o general Figueiredo e expoentes da linha dura não surtiram efeito. Sarney tomou posse, ganhou mais tempo de mandato valendo-se da velha barganha política, e a “tigrada” bateu em retirada depois de duas décadas de mandonismo.
Hoje, o país é sacudido pela informação de que o presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército, eleito pelo voto direto em 2018, contraiu o novo coronavírus, a doença invisível e assustadora que se espalha por todo o mundo e é tratada incessantemente na mídia como pandemia. Em relação a Bolsonaro, é inevitável assinalar uma peculiaridade: ele tem assumido ostensivamente postura negacionista quanto aos efeitos da covid-19, confrontando-se o tempo todo com cientistas e profissionais da medicina. Já chamou a pandemia de “gripezinha”. No período em que foi especulado que ele havia contraído o vírus, Bolsonaro moveu céus e terras para desmoralizar a versão. Em paralelo, desrespeitou normas de higiene e saúde, renega sistematicamente o uso de máscaras e promove aglomerações. De concreto, instilou a dúvida. Ontem, ele mesmo veio a público dizer que estava com covid-19. Aí ocorreu reação distinta: parte da sociedade questiona se é verdadeiro o diagnóstico anunciado, até porque o presidente aproveitou para atuar como garoto-propaganda da hidroxicloroquina, medicamento cuja eficácia no combate à covid-19 não foi comprovada.
Exceto reações belicosas de xiitas que sempre quiseram ver Bolsonaro fora de combate, a porção sensata da sociedade não lhe deseja mal e faz votos de recuperação. Mas o anúncio oficial colocou a nu, em toda a sua extensão, a falta de credibilidade da palavra do presidente da República e, também, a desconfiança popular crescente quanto ao seu governo. É um contencioso e tanto, uma tragédia a mais a sacudir a Nação, tanto mais porque o país está sem um ministro titular na Saúde e o governo em si é uma Torre de Babel no enfrentamento à pandemia. Além de Bolsonaro, é o Brasil como um todo que requer orações fervorosas para que possa se livrar da série de tragédias que o tem acometido.