Nonato Guedes
No livro “A Arte da Política – A História que Vivi”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) lembra episódios da campanha em que foi derrotado a prefeito de São Paulo em 1985 e na qual foi rotulado como “maconheiro” e ateu por adversários políticos. O vencedor do pleito foi Jânio Quadros, que ressuscitava na cena política depois da patética renúncia à Presidência da República em 1961. Fernando Henrique, conhecido pela militância como sociólogo, ensaiava passos na atividade política e era suplente de senador de Franco Montoro (PMDB), também conhecido como “senador suplente”, como ele registra.
Na eleição direta a prefeito, que havia sido restaurada nas Capitais depois de prolongado jejum imposto pela ditadura militar, o candidato natural do partido era Mário Covas, prefeito em exercício nomeado por Montoro quando governador, conforme as regras então vigentes. Covas foi impedido de disputar por uma manobra política no Congresso que vedou aos titulares das prefeituras o direito de se candidatar, favorecendo-se, assim, a candidatura de Jânio pelo PTB, com a eliminação do competidor mais forte da oposição. Com o impedimento de Covas, Montoro optou por lançar Fernando Henrique, que perdeu por poucos votos (cerca de 2%) num universo de 4,8 milhões de eleitores. Diz FHC: “Há várias especulações sobre as razões da derrota e uma só verdade: não fui capaz de convencer o povo de que seria um bom prefeito…”
Em paralelo, brotaram fatores de sórdida exploração engendrados com o fito de desgastar a imagem de Fernando Henrique. Ele explica: “Não é verdade que eu tenha proclamado na TV minha suposta condição de ateu, o que teria me levado a perder. O editor-chefe da Folha de S. Paulo, Boris Casoy, me dirigiu uma pergunta que lhe pareceu oportuna sobre minhas convicções religiosas. Respondi que se tratava de questão de foro íntimo, sem utilidade para avaliar o desempenho de um prefeito, tal como registrado pela própria Folha. Inútil: no dia seguinte, a cidade se enchia de panfletos contra o “ateu”. Pior: os adversários utilizaram uma entrevista que eu havia concedido à jornalista Miriam Leitão para a revista Playboy meses antes e, deturpando o sentido de uma resposta, qualificaram-me como usuário de maconha. Minha inocência política era tamanha que não percebi o potencial devastador do boato. Parecia-me tão descabido alguém acreditar na versão que não imaginei a história “pegasse”. Pois pegou. E seu efeito demolidor superou o do suposto ateísmo”.
Fernando Henrique conta que um dia, na periferia de São Paulo, na Cidade Tiradentes, em uma quase-favela, uma senhora lhe perguntou: “É verdade que o senhor vai distribuir maconha no lanche das escolas?”. E acrescenta: “Política, principalmente eleitoral, é assim mesmo. Há momentos em que vale tudo e nos quais se acredita em qualquer coisa”. Outra “explicação” cogitada para a derrota tem a ver com uma foto publicada no dia das eleições, 15 de novembro de 1985, na qual FHC apareceu sentado na cadeira de prefeito antes da hora. “É evidente que, por numerosos que tivessem sido os leitores da reportagem, não haveria tempo de influir no voto. Mas a foto prova que eu merecia perder…por ingenuidade”, narrou ele.
O sociólogo havia feito um acordo com repórteres da revista Veja São Paulo para ser fotografado sentado na cadeira de prefeito para o caso de vitória, pois as eleições estavam extremamente apertadas e, além de tudo, se a revista quisesse, como pretendia, trazer o novo prefeito na capa, não haveria como fotografá-lo a tempo no gabinete oficial. Num final da manhã, a revista aproveitou sua presença numa solenidade na então sede da prefeitura, no Parque do Ibirapuera, e executou o trabalho. Outros fotógrafos também clicaram a cena, assumindo o mesmo compromisso da revista. A Folha de S. Paulo, porém, rompeu-o e publicou a foto em primeira página. Repercutiu mal, pois passou a imagem de soberba ou triunfalismo do candidato. Na análise de FHC, o episódio demonstrou seu despreparo para a aspereza da luta política. Foi o pedágio pago “por um professor catapultado à arena cheia de feras. Perdi, é o que conta, e a derrota me ajudou na futura trajetória política”, salientou ele, admitindo que a derrota ensina. Já ouvira, certa vez, de Leonel Brizola, que foi a adversidade que lhe deu força para, perdendo a arrogância, ser mais realista e buscar energia para novas caminhadas.
E, no arremate, refletiu Fernando Henrique: “O fato é que desde então, em todas as partidas políticas em que me meto, e não só nas eleitorais, entro sempre supondo a possibilidade da derrota. Quando ganho, naturalmente, me sinto gratificado, mas nunca o suficiente para esquecer o quanto custou a vitória; quando perco, durmo com a esperança do amanhã”. O melhor aprendizado, para o sociólogo, foi o de que o eleitorado pratica uma justiça compensatória: “quem perde hoje, se não se desmoralizar, tem boa chance de ganhar amanhã”. Foi assim que ele deu a volta por cima e, por duas vezes, em 1994 e 1998, foi eleito presidente da República. “De nada adianta buscar culpados nem guardar ressentimentos, e menos ainda discutir lealdades. O melhor cimento das lealdades é a vitória”, ensinou. Hoje, FHC é um espectador da cena nacional, com direito a dar “pitacos”, aqui e acolá, sobre temas polêmicos.