Nonato Guedes
Consta da literatura política que ao ser convocado para o posto de companheiro de chapa de Tancredo Neves na disputa à presidência da República no colégio eleitoral indireto em janeiro de 1985, o político maranhense José Sarney fez um juramento: disse à raposa de Minas que seria, pelos anos seguintes, um “vice discreto de um presidente forte”. O destino, porém, como se sabe, não reservara para Sarney o papel de mero figurante na História. E bateu à sua porta às três da manhã do dia 15 de março daquele ano com a notícia de que ele assumiria a presidência no lugar de Tancredo, então anestesiado numa cama de hospital em Brasília. Tancredo saiu de uma via crúcis hospitalar direto para o cemitério. Sarney pulou na sua cadeira e ainda hoje causa polêmica entre os que ousam julgá-lo ou definir seu perfil.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente do capitão Jair Bolsonaro, foi indagado esta semana à queima-roupa pelo senador Jorge Kajuru (GO), durante debate com parlamentares, se está preparado para assumir efetivamente a presidência da República. “Se eu responder sim, o chefe que está lá no Palácio do Alvorada recuperando-se do Covid vai dizer: Pô, esse cara está de olho no meu cargo. Se digo não, os senhores e as senhoras vão pensar: “Pô, não temos ninguém para substituir o presidente. Prefiro que tirem suas próprias conclusões: se eu mereço um voto de confiança ou se tenho que ser afastado para o lixo da história”, reagiu Mourão, deixando escapar uma dosagem de malícia política. O debate de que ele participou foi sobre desmatamento na Amazônia e cabe registrar que Mourão defendeu as políticas adotadas pelo governo presidido por Bolsonaro no que concerne ao meio ambiente, que são criticadas em todo o mundo por entidades e personalidades respeitáveis.
O vice de Bolsonaro já tentou ser mais discreto e cumprir à risca o figurino que recomenda uma postura permanente de semi-recolhimento diante dos holofotes da mídia, mesmo quando guindado ao cargo titular nas situações excepcionais previstas pela Constituição, o “livrinho sagrado” de que falava o ex-presidente Dutra. Mourão, todavia, acabou cedendo às tentações e…falando. Houve momentos em que pareceu “falar pelos cotovelos” quando subiu o tom e apelou para a ironia ao se referir a filhos do capitão-presidente, que, como é público e notório, são fontes de problemas para o próprio pai e, não raro, deixam-se pilhar em atos e ações que denunciam extrapolamento de competência ou atribuição. Decerto confiam na benevolência e cumplicidade paternas para cometer desatinos.
Há uma tendência natural a desconfiar-se das figuras dos vice-presidentes – e, a bem da verdade, diga-se que esse vezo não foi estimulado pelos militares. Os próprios civis que militam na política protagonizaram episódios e produziram verbetes incorporados ao anedotário como supostas caricaturas da figura do vice. Uma das versões correntes dá conta que é no gabinete dos vices que nascem as grandes conspirações. Há mesmo presidentes que acreditam piamente nessa maldição, como a petista Dilma Rousseff, que atribuiu o seu impeachment no segundo mandato não às pedaladas fiscais apuradas pelo Tribunal de Contas da União e referentes à sua gestão, mas a manobras e conchavos que teriam partido do então vice Michel Temer. E tanto teria sido assim que Dilma acabou sendo punida sozinha pelo Congresso, enquanto Temer, poupado, ascendeu ao lugar dela e tirou o mandato até o fim.
Na verdade, vices não são maiores do que presumivelmente cogitam ser, nem menores do que aparentemente são, tal como avaliados ou retratados por historiadores e observadores em geral do cenário político institucional de um país. Itamar Franco, que assumiu com o impeachment de Fernando Collor de Mello, era descrito como “mercurial”, dono de pavio curto, mas entrou para a História como um democrata e um dos pais do Plano Real que legou estágio de estabilidade econômica ao Brasil. O próprio Sarney, que dizia não estar à altura da responsabilidade de substituir a Tancredo Neves, acabou fazendo um governo de altos e baixos, com concessões ao populismo e erros na política econômica que geraram inflação alta, mas não contribuiu para o naufrágio total da nascente Nova República que enfeixava sob seus ombros.
Vices crescem ou diminuem de tamanho dependendo das circunstâncias e da capacidade que demonstram para resolver problemas ou desafios graves da conjuntura nacional. O general Hamilton Mourão, por assim dizer, não chegou ainda a ser propriamente testado em grandes embates ou conflitos ou situações de tensão. Não é tão discreto que possa ser ignorado por algum movimento que faça ou por algum pronunciamento que externe. Dá a impressão de ser um vice que deseja “ficar bem” na fotografia, o que, dependendo do ponto de vista, pode ser positivo para a sua imagem. Se “ficar bem” na fotografia significa respeitar e cumprir a Constituição, aniquilando bolsões autoritários, Mourão já estará de bom tamanho na eventualidade de…alguma eventualidade, digamos assim!