Linaldo Guedes
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Dizem que o artista se “realiza” na dor. Falo de realizar-se enquanto artista na produção de alguma obra de arte. Não comungo desse pensamento. Para mim, o bom escritor, o bom poeta, o bom artista se realiza em qualquer momento. Até porque a poesia, no caso específico do que vamos falar aqui, se realiza enquanto construção de linguagem. Sim acredito na inspiração, mas ela só se realiza enquanto poesia quando é bem trabalhada do ponto de vista de linguagem.
Ed Porto já não é mais um jovem poeta paraibano. Quando surgiu, encantou a todos os amantes da poesia com uma poética concisa, na maioria das vezes, e atualíssima, com as vanguardas e com o que elas rejeitam. Agora chega com um novo livro – “Etéreo”, que apesar do título que possa parecer arrogante, é justamente do contrário que fala a poesia de Ed Porto, nesta obra que será lançada pela Editora Patuá ainda este ano. É uma poesia que tem “pegada”, “punch”, que nos soqueia, às vezes, mas também nos acarinha em muitos versos, como cabe a um bom poeta.
E uma poesia que, acrescentaria, se transforma, também, numa espécie de cronicário do mundo em que vivemos hoje, com uma pandemia que assusta todo o planeta, nos mantendo prisioneiros em nossas casas, em nossos medos. Diversos poemas dessa coletânea refletem, provocam e tentam poetizar o momento delicado que vivemos. É o caso de “Alcohol Gel” ou de “O Vírus”, falando do que une e separa ovos, ou povos. Ou do “Pout-pourri”, onde não se perde a oportunidade poética de falar da filosofia barata de Olavo Carvalho em contraponto ao mestre Paulo Freire.
O poema “O bicho” lembra-nos que cada dia mais o domingo é dia de silêncios. Na verdade, é um poema sobre o coronavírus (Covid-19), num ritmo que daria para construir uma música. Aliás, musicalidade é o que não falta na poesia de Ed Porto. Vários poemas do livro têm essa simbiose – não sei se intencional ou não – entre verso e ritmo. Mas não o ritmo normal, cadenciado, que se deve apresentar num bom poema. Falo do ritmo musical mesmo. Assim, você lê o poema já como se estivesse cantando uma música. Bom, mas isso é outro assunto. Voltemos ao livro.
Ainda na seara momento atual, há poemas como “Greta”, “Diagnosis”, “Morre Moraes Moreira” e o belíssimo “Coronavírus”: “Por que se quer ir à lua/ sem antes cuidar do seu quintal?”
Pois é, isso tudo vai passar. Até lá, precisamos curtir a poesia de Ed Porto, um vírus saudável, é bom que se diga. Neste livro, há vários casos de lirismo ao cubo, em poemas que encantam pela sua delicadeza, em contraponto aos que falam do momento atual. “Pluviométrico”, por exemplo, apresenta um erotismo sutil, a falar em “chutar poças, possuir as moças molhadas”. Em “Homilia” ironiza os ritos religiosos; em “Fluindo” fala sobre a rotina e do homem que sorri latindo para o cão; em “Feministo” é todo lúdico no convite para dançar; em “Bodas” todo lírico em devoção à amada; assim como em “Bananeiras” mergulha nostálgico no passado e em “Bálsamo” conclui que resta apenas a dor dos dias. E por que não falar do poema “As deusas da noite”, que mais parece um bolero de Ravel?:
As deusas da noite, dançando ou não,
desintegram este meu pobre coração
Elas me dizem que os dias podem ser outros
ogros podem virar príncipes
pobres podem enriquecer
padres podem acasalar
As deusas da noite deixam dúvidas
sobre o sacramento
sobre o “ser fiel até a morte”
sobre os seres e estares sempre a fim
As deusas da noite testemunham
que o céu existe e que ele está radiante
aos nossos olhos, a nos estarrecer
Ou pessimismo hollywoodiano de “Vidente:
Baixou em mim um cartomante
Um bardo ou amante seria melhor
Mas o vidente previu o fim
do meu inferno-astral para amanhã
E assim preparei o champanhe
com frutos-do-mar
e com Maria Joana pra celebrar
Como uma turnê da vida que acaba
e a cada ciclo se renova
Como uma bossa-nova
Como Sir. McCartney
Lei it be
Se o profeta estiver certo
decerto decretarei feriado internacional
que nem o primeiro dia anual que é da paz
E nunca mais deixarei ela sair assim
pois serei sim mais perspicaz
A poesia de Ed Porto é uma prova viva de que é possível, ainda, olhar os lírios da linguagem.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.