Nonato Guedes
A data de hoje assinala o centenário de nascimento, na cidade de Pombal, interior paraibano, do economista Celso Furtado, um dos mais brilhantes pensadores da História do país e figura de conceito internacional, tendo sido professor categorizado da Universidade de Sorbonne, na França. Fundador da Sudene, organismo que concebeu como instrumento para planejar o desenvolvimento da marginalizada região do Nordeste brasileiro, Celso foi também ministro de Planejamento do governo João Goulart, deposto pela ditadura militar de março de 64. Ele próprio teve os direitos políticos cassados pelo regime militar, sendo levado a se exilar para poder sobreviver. Retornou ao país vinte anos depois, quando se incorporou à cena nacional, sendo requisitado como formador de opinião e estudioso da conjuntura. Chegou a ser ministro da Cultura no governo de José Sarney, que marcou a derrocada das forças do arbítrio. Morreu em 2004.
Em torno de Celso Furtado, na sua volta ao país, criou-se entre lideranças políticas e segmentos intelectuais da Paraíba uma orquestração para fazê-lo candidato a governador quando foram restauradas as eleições diretas nos Estados, Capitais e cidades situadas em áreas de segurança nacional, embargado, ainda, o pleito direto para Presidente da República, somente devolvido em 1989. A motivação para fazer Celso candidato a governador da Paraíba pareceu justa e nobre, premiando não apenas o intelectual consagrado e conterrâneo mas a própria terra que lhe serviu de berço e que teria a honra de contar à frente dos seus destinos com um quadro de excepcional valor e relevância. Tudo isto em tese porque, na prática, o projeto de “Celso Furtado candidato” era inviável, por vários fatores.
Abstraindo o prestígio internacional e as qualificações que o tornavam um homem público preparado, de inegável estatura ou dimensão, cabe ressaltar que Celso Furtado não tinha vivência maior com a Paraíba, conhecimento mais abalizado dos problemas estruturais que afetavam o Estado, muito menos relação de empatia com os paraibanos. Estava afastado das raízes há muito tempo e havia se tornado um respeitável cidadão universal. Aliás, era muito mais lido e discutido nos grandes centros, do Brasil e do exterior, do que na pequenina Paraíba. Para completar, o economista não tinha áreas de contato ou ligações com os quadros dirigentes e as elites políticas que atuavam no Estado. É certo que quando buscou reaver os direitos políticos o fez pela Paraíba, dirigindo-se a Cartório Eleitoral em João Pessoa para pedir devolução do Título de Eleitor. Isto não significava interesse de pretensão política, mas gesto de reconquista da Cidadania, o que não impediu que Celso fosse assediado por líderes locais.
Esses líderes, remanescentes da oposição ao regime militar e “aquartelados” dentro do PMDB, estavam tateando na análise sobre a retomada dos espaços políticos na Paraíba e, mesmo, sobre projetos de conquista do poder, que ambicionavam, de forma legítima, encampar. Voltaram-se para Celso acreditando que seria ele a “grande novidade” a apresentar ao julgamento dos paraibanos nas urnas na realidade de redemocratização política e institucional. Não se opunham a passar-lhe o bastão; antes, pelo contrário, sentiam-se envaidecidos por tê-lo como espécie de guru e de guia político do “novo eon”. Dentro do PMDB os mais empenhados na “operação Celso” foram o deputado federal Octacílio de Queiroz e o então deputado federal Marcondes Gadelha, além do economista Ronald Queiroz e, mesmo, de jornalistas remanescentes das lutas travadas pela esquerda contra a ditadura.
Celso Furtado, que chegou a ser ciceroneado por dirigentes do PMDB na ida ao Cartório para obter devolução do Título de Eleitor, não escondeu sua irritação ao saber dos movimentos para torná-lo candidato ao governo. Indagado por jornalistas, reagiu afirmando que não tinha uma carreira propriamente política e que, por isso, não se empenhava em disputar cargos ou tentar se eleger a mandatos. Considerava que, politicamente, seria mais útil à sociedade, na Paraíba, no Brasil, em qualquer outro fórum, efetuando um trabalho de esclarecimento, informação e conscientização por outros canais, não necessariamente através da representação política. “Eu sou um intelectual”, declarou-me, quando o abordei em entrevista para o jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual fui correspondente regional na Paraíba na década de 80. A postura de Furtado alimentou a falsa impressão de que ele era arrogante e estava tratando o Estado e os seus conterrâneos com desprezo. Era “fakenews”, podem acreditar.
O projeto de candidatura de Celso Furtado ao governo da Paraíba não foi à frente porque nunca existiu de verdade e precisaria, é evidente, do seu consentimento para que se viabilizasse. Quando caiu o pano e a realidade predominou na Paraíba, os candidatos a governador em 1982 foram personagens que estavam enfronhados na conjuntura daqui – os ex-deputados Antônio Mariz e Wilson Braga, com vitória esmagadora deste. Celso Furtado, fiel às suas convicções, nem participou da campanha ou foi a palanque, por razões de natureza ética. Isto só o engrandece e o torna merecedor das homenagens ao ensejo do ano do centenário do seu nascimento e em qualquer tempo em que se faça necessária a discussão da realidade brasileira e, em particular, da realidade nordestina. Ele soube traduzir, como poucos, essa realidade ainda hoje cruel.