Nonato Guedes
A tradicional homenagem ao presidente João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, no dia de sua morte, eclipsou-se do calendário de eventos oficiais da Paraíba. Ontem, pelo menos, o transcurso dos 90 anos do assassinato de João Pessoa pelo desafeto político João Dantas, na Confeitaria Glória, no Recife, fato que historiadores qualificam como estopim da Revolução de 1930, passou em brancas nuvens, provocando protestos de alguns parentes, em redes sociais, contra o alegado “esquecimento” da importância do personagem. Anualmente, na Praça dos Três Poderes em frente ao Palácio da Redenção, centro da Capital, ocorria “ato cívico” com exaltação a João Pessoa, seguido de visita, por familiares e admiradores, ao mausoléu do Palácio onde estão os restos mortais do ex-presidente. Uma missa na Catedral Metropolitana coroava as homenagens. Nos meios de comunicação, o governo do Estado prestava o seu tributo.
Todo esse roteiro desapareceu, ontem, justamente numa data emblemática. O vereador Fernando Milanez Neto, sobrinho neto do presidente, informou nas redes sociais que a tradicional homenagem póstuma fora cancelada devido à pandemia do novo coronavírus, que impõe rigorosas medidas de proibição de aglomerações. “Mas lembramos com muito orgulho do homem íntegro e político que ele foi”, ressaltou o vereador, que postou imagens da homenagem realizada no ano de 2019 em que o próprio Milanez discursou. Para ele, João Pessoa foi um dos paraibanos mais notáveis de todos os tempos, tendo sido advogado, ministro civil do Superior Tribunal Militar e presidente da Paraíba, numa época em que os governadores eram denominados de Presidentes de Estados. “Em seu governo (1928-1930) realizou uma reforma político-administrativa no Estado e instituiu a tributação sobre o comércio realizado entre o interior paraibano e o porto de Recife, com o intuito de enfrentar as dificuldades financeiras da época”, acrescentou.
O vereador definiu João Pessoa como “homem visionário” e destacou que a morte dele “foi uma grande perda para a nossa política” e culminou na Revolução de 1930, prosseguindo: “Na condição de sobrinho neto, tenho orgulho imenso do meu histórico familiar e, principalmente, por saber que minhas raízes políticas provêm de pessoas que sempre lutaram pelo povo brasileiro, em especial os pessoenses e paraibanos”. Nascido em Umbuzeiro em 1878, João Pessoa era sobrinho do ex-presidente da República Epitácio Pessoa e em 1930 comandava o governo da Paraíba. Foi morto com dois tiros disparados pelo advogado João Dantas, por razões passionais que derivaram para o campo político. Em plena radicalização, o escritório de João Dantas na antiga cidade de Parahyba do Norte foi invadido por uma força policial do Estado e de lá foram retiradas correspondências amorosas trocadas entre Dantas e a poetisa e professora Anayde Beiriz.
Alguns trechos das cartas foram publicados e expostos na sede do jornal oficial “A União”, despertando a ira de João Dantas e acirrando os ânimos entre “perrepistas” e “liberais” como eram denominados os partidários de correntes políticas então predominantes e que se engalfinhavam em embates de profunda repercussão. O advogado, que era aliado do “coronel” José Pereira Lima, mentor da chamada “Revolta de Princesa”, que transformou a cidade de Princesa Isabel em “território livre”, premeditou a vingança contra o presidente João Pessoa, informando-se sobre o roteiro de uma viagem sua ao Recife, para onde também se deslocou, consumando o assassinato do desafeto. A morte de João Pessoa alcançou repercussão nacional e ele foi sepultado com honras no Rio de Janeiro, capital do País. No mesmo ano, deputados estaduais da Paraíba aprovaram a mudança do nome da Capital para João Pessoa.
Desde a chamada Era Vargas, empalmada pelo ex-presidente Getúlio Vargas, intensificou-se o culto à figura de João Pessoa, com reflexos na Paraíba, onde as paixões eram mais latentes e por muito tempo ecoaram em páginas de jornais, livros e teses acadêmicas versando sobre o perfil político do paraibano ilustre e sobre o seu significado no contexto da Revolução de 1930. Foi nesse apogeu que se institucionalizou o culto a João Pessoa, encampado oficialmente pelo Executivo paraibano em diferentes governos de colorações ideológicas-partidárias distintas. Abriu-se espaço, em paralelo, e, inevitavelmente, para o revisionismo histórico, focado na desmistificação do personagem destacado. Os movimentos evoluíram, até, para tentativas de mudança do nome da Capital, com propostas para que João Pessoa voltasse a denominar-se Paraíba. A articulação reacendeu espíritos e produziu confrontos tanto na Câmara Municipal como na Assembleia Legislativa, mas o intento dos “revisionistas” nunca foi alcançado.
Formalmente o governo do Estado, atualmente titulado por João Azevêdo, não passa recibo de qualquer iniciativa para abolir a homenagem institucional a João Pessoa. Mas os próprios descendentes do ex-presidente acumulam, há alguns anos, a impressão de que está em curso, de forma irreversível, o processo de esquecimento do personagem ou, pelo menos, de extinção do “culto à personalidade” que resistiu por quase um século na Paraíba. “Uma página decisiva da História está sendo virada”, disse-me, “em off”, ensaísta paraibano de nomeada, que se debruçou, em algumas de suas obras, sobre acontecimentos ligados à figura de João Pessoa.