Nonato Guedes
Ainda que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB não a tenha formalmente endossado, é emblemática a carta firmada por 152 arcebispos e bispos da Igreja Católica com duras críticas ao governo do capitão Jair Bolsonaro, evidenciando o estarrecedor desprezo conferido pela atual gestão à educação, cultura, saúde e diplomacia. Faz lembrar, remotamente, os libelos que eram produzidos em plena ditadura militar, numa fase em que o próprio clero, mesmo dividido entre progressistas e conservadores, pôs-se na vanguarda das denúncias de violações de direitos humanos e arbitrariedades cometidas pelo aparelho repressor. Entre os expoentes da vanguarda, na “longa noite das trevas”, figuras como dom Paulo Evaristo Arns, dom Hélder Câmara e dom José Maria Pires, este pontificando na Arquidiocese da Paraíba durante três décadas.
A carta de agora acusa o governo Bolsonaro de demonstrar omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres, além de incapacidade para enfrentar crises. Ao longo do texto, os bispos afirmam que a situação é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas, na escolha da educação como inimiga e nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros. Alguma inverdade nas colocações? Nenhuma. O governo Bolsonaro põe em xeque ostensivamente a Ciência e a Medicina, avacalhou o Ministério da Educação e disseminou uma onda de terrorismo nas redes sociais, com “fake news” de notório caráter diversionista. De acordo com o G1, a carta seria publicada na última quarta-feira para análise pelo Conselho permanente da CNBB, no entanto, acabou vazando no domingo. O Palácio do Planalto não quis comentar as críticas. O documento já entrou na História.
Os bispos e arcebispos advertem que o presidente da República usa o nome de Deus para “difundir mensagens de ódio e preconceito”. E pontuam: “Como não ficarmos indignados diante do uso (do nome de Deus e de sua Santa Palavra), misturados a falas e posturas preconceituosas que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?”. Eles também pedem união por um diálogo contrário às ações do governo. Seria um amplo diálogo nacional, envolvendo humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito. “Com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com terra, teto e trabalho, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos”.
Na carta, os religiosos sustentam que o Brasil atravessa “um dos momentos mais difíceis de sua história”, vivendo uma “tempestade perfeita”. Essa tempestade, nas palavras dos bispos, culminaria em uma “crise sem precedentes na saúde” e em um “avassalador colapso na economia” com a tensão “provocada em grande medida pelo presidente da República (Jair Bolsonaro) e outros setores da sociedade”. Enfatiza: “Analisando o cenário político sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do governo federal em enfrentar essas crises”. Com base em versículos bíblicos, o texto menciona o atual momento da pandemia do coronavírus enfrentada pelo país e o aumento de casos e óbitos em decorrência da doença.
– Assistimos discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela Covid-19. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja. Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam – verbera a carta. Os bispos definem-se como representantes de várias regiões do território nacional e se apresentam “em profunda comunhão” com o Papa Francisco e seu magistério, bem como na comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, “que no exercício de sua missão evangelizadora sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz”. O fundamento motivador da elaboração da carta é a gravidade da conjuntura vivenciada no Brasil, sem o oferecimento de alternativas viáveis para parcelas da sociedade que perderam as esperanças de dias melhores.
Como está dito no documento, o cenário de “perigosos impasses” que colocam o Brasil à prova, exige das instituições, dos líderes e das organizações civis “muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados”. E mais: “Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença. É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se claramente em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do governo não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro”.
O arremate é claro: “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente”!