Nonato Guedes
Apesar da idade avançada e do fato de já ter sido prefeita de São Paulo – diga-se de passagem, a primeira mulher eleita numa das maiores Capitais da América Latina – a deputada federal Luíza Erundina, natural da cidade de Uiraúna, no Sertão da Paraíba, mostra que ainda tem entusiasmo pela disputa política de alto nível e comprometida, verdadeiramente, com o interesse público. Foi por convicção quanto a essa crença ou a esses valores que Luíza Erundina aceitou ser candidata a vice-prefeita nas eleições deste ano em São Paulo, na chapa encabeçada por Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. E é por causa da aliança entre Boulos e Erundina que personalidades como artistas de renome da MPB e remanescentes do PT declararam apoio a ambos na corrida.
O PT, seguindo a estratégia ditada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, investe na candidatura própria de Jilmar Tato, que não empolga trabalhadores nem outros segmentos do eleitorado mas que é inteiramente confiável ao “pajé” atualmente em liberdade após permanecer 580 dias recolhido à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Da Silva é o grande mentor da estratégia de lançamento de candidaturas próprias do PT a prefeito na maioria das Capitais e cidades consideradas decisivas para o projeto de poder de uma agremiação que perdeu muito espaço e quase “sangrou” na esteira de escândalos como o do mensalão, o do petrolão ou de processos desgastantes como o do impeachment da ex-presidente Dilma Vana Rousseff, combinado com a decretação da prisão de Lula da Silva pelo ex-juiz Sergio Moro. Lula tem aproveitado o período de liberdade que usufrui para o derradeiro esforço com vistas a recompor uma legenda que já foi fenômeno na história da quadra política recente no país.
O ex-presidente sabe que o esforço de recomposição da imagem e dos espaços de poder do Partido dos Trabalhadores constitui uma tarefa hercúlea, diante da debandada enfrentada em inúmeros Estados, com a perda de quadros valiosos, da elite de esquerda nacional, que enfeitavam a legenda fundada no Colégio Sion na década de 80 e sedimentada nas memoráveis assembleias e mobilizações de sindicatos de metalúrgicos do ABC paulista. A participação de Luíza Erundina na disputa de 2020 como candidata a vice valoriza a campanha pela sua integridade mantida ao longo da trajetória e pelo desassombro com que toma posições em defesa dos setores excluídos ou marginalizados, batendo de frente com as classes poderosas, detentoras de privilégios no injustiçado modelo econômico e social que vigora no Brasil a despeito das conquistas e de avanços assinalados nas últimas décadas, desde o fim da ditadura militar com a retomada do pacto democrático.
No período mais recente da conjuntura política brasileira, Luíza Erundina insurgiu-se na Câmara Federal contra os desmandos da gestão do ex-presidente Eduardo Cunha, que, como se sabe, ainda continua preso, atolado em caudal de processos de corrupção que tisnaram irreversivelmente a biografia que intentava consolidar. Mas a combatividade da parlamentar paraibana eleita por São Paulo se estendeu à firme oposição ao governo de Michel Temer, do MDB, passando pela contestação sistemática ao governo do presidente Jair Bolsonaro e às conexões deste com forças políticas que compõem a escória das elites políticas brasileiras, a exemplo de integrantes do chamado “Centrão”, agrupamento conservador e reacionário que trava na Câmara e no Senado as pautas liberalizantes ou democráticas e que faz política na base do “toma lá, dá cá”, espelhando o mais desprezível fisiologismo de que se tem notícia.
A passagem de Luíza Erundina pelo Partido dos Trabalhadores, infelizmente, foi tumultuada devido a equívocos cometidos por líderes da agremiação, a começar do próprio Lula, quanto à compreensão da importância do papel desempenhado por ela na conjuntura democrática e no respeito aos valores éticos e morais. O PT, com a cumplicidade direta de Lula, sabotou a administração de Luíza Erundina, cujo secretariado era mais expressivo do que muitos ministérios que prosperaram no governo federal, a partir do recrutamento de nomes como o educador Paulo Freire para a secretaria de Educação de São Paulo. Como prefeita, Erundina se viu às voltas com armadilhas preparadas pela Câmara Municipal para desgastá-la e prejudicar a implantação de um modelo realmente diferente de poder. Da orquestração fizeram parte expoentes do Partido dos Trabalhadores, para quem a paraibana de Uiraúna constituía um estorvo, um grande empecilho a maracutaias de todo tipo na gestão pública.
Foi por isso que Erundina passou a desenvolver trajetória cambiante, migrando do PT para o Partido Socialista Brasileiro, onde também não se sentiu enquadrada, talvez por pressentir (e constatar) que o socialismo era apenas a fachada de um agrupamento sem maior consistência ideológica ou compromisso político-partidário. Ela optou por ser coerente consigo mesmo, com suas ideias, suas propostas – e, nessa circunstância, acabou chegando aos quadros do PSOL, que procura combinar socialismo com liberdade, num experimento que ainda precisa passar pelo grande teste de autenticidade. A respeitabilidade que Luíza Erundina empresta à chapa encabeçada por Boulos na eleição municipal deste ano em São Paulo dá bem a dimensão da relevância que ela tem na conjuntura, independente de siglas partidárias.