Nonato Guedes
Dois jornalistas de sensibilidade aguçada – Ricardo Kotscho, militante na imprensa paulista, e Sílvio Osias, com atuação na mídia paraibana, escrevendo, hoje, no JPB online, fizeram relatos impressionantes sobre 150 dias de quarentena forçada por causa da epidemia do coronavírus e atestam o quanto a rotina, os sonhos, os planos, ficaram congelados nesse período. No artigo no UOL, Kotscho conta que há 150 dias não põe os pés no elevador nem encontra ninguém. “É como se a minha vida tivesse sido congelada entre quatro paredes”, reforça. Sílvio Osias, por sua vez, cita o doutor Drauzio Varella, com a afirmação: “Na base do liberou geral, a tragédia persistirá por vários meses”. E Sílvio indaga, pressuroso: “Quando será que tudo isso vai passar?”.
O que angustia Kotscho é sentir que o país inteiro “parece anestesiado, inerme, conformado, bestificado, só esperando a vacina ou a morte chegar”. E anota: “Silenciaram os panelaços. Não me pedem mais para assinar manifestos. As lives e videoconferências se tornaram repetitivas. Os grupos de zap-zap foram murchando, os telefonemas e e-mails rareando, as más notícias se multiplicando, meus amigos morrendo, sem sinais de terra à vista. Se não fossem os sons das motos dos entregadores zunindo de um lado para outro – a trilha sonora da quarentena que virou cento cinquentena – das crianças brincando no jardim do prédio vizinho, dos aviões passando aqui por cima, do caminhão de lixo da meia-noite, da polifonia da televisão, acho que eu iria enlouquecer, achando que eu caí do mundo”.
Ele confessa que continua escrevendo todos os dias porque vive disso e para mostrar que ainda está vivo. Mas diz que já sabe mais o que dizer diante das tantas barbaridades diárias que se transformaram no “novo normal”, o conjunto de sandices e mentiras de um tempo anormal. “Nesse meio tempo, tudo virou fake, irreal, surreal, banalizando o absurdo, um filme de terror sem fim. São muitas pandemias ao mesmo tempo – sanitárias, políticas, econômicas, sociais, sem deixar espaço para a esperança. Os dias são todos iguais, sem graça, só cumprindo tabela. A esperança cansou de esperar. Até o futebol perdeu o encanto, com os estádios vazios, como se fosse um jogo de videogame. Os robôs e os algoritmos ocuparam o lugar das pessoas de carne e osso (…) Sou de um tempo em que as pessoas se abraçavam e se beijavam sem medo, sem máscaras e proteções de acrílico. Estou começando a achar que meu tempo passou e não tem mais volta (…) Tenho medo desse novo mundo que vou encontrar na rua”.
Já Sílvio Osias narra que no sábado passado também atingiu 150 dias de isolamento social, que amanhã completará cinco meses. Ele diz que teve vontade, mas faltou coragem, de rever “No Mundo de 2020”, que viu no cinema há 15 anos. “Qual dos dois futuros é pior? O projetado pela ficção científica ou o que virou presente?”, pergunta. Crítico de cinema e cultura, Sílvio recorda que no filme de Richard Fleischer o Estado oferece uma morte confortável às pessoas (espécie de suicídio assistido), tamanha a desgraça que se abateu sobre o planeta. “O velho Edward G. Robinson morre diante de imagens e sons que faziam parte do passado, tudo em telões ao seu redor. Aquele mundo virtual de tanta beleza não tem nada a ver com o mundo de 2020”, acrescenta.
O jornalista paraibano conta que no ano de 2020, o mundo real em que vivemos, os governos disseram que os velhos morreriam de Covid-19 (no máximo, teriam direito a uma UTI) até que se viu, rapidamente, que a doença mata em qualquer idade. “Não necessariamente para a Covid, perdemos Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc, Little Richard, Gilberto Dimenstein, Leonardo Villar, Enio Morricone, Sérgio Ricardo, Olívia de Havilland, Renato Barros, Alan Parker, Dom Pedro Casaldáliga e Trini Lopez. Vimos o papa Francisco rezando para uma Praça de São Pedro vazia. E Andrea Bocelli cantando numa catedral de Milão sem plateia alguma. Testemunhamos os corpos levados em caminhões na Itália, onde morriam 400, 500 pessoas por dia. Nem imaginávamos que, logo, teríamos mais de 1OOO no cotidiano brasileiro. Mortos em valas comuns? Tanto em Nova York quanto na Amazônia. Assistimos ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia. “Uma gripezinha”, a história registrará o seu descaso. Bolsonaro abriu mão de assumir a liderança da luta contra o novo coronavírus para negar a ciência e recusar o bom senso. Ao levantar uma caixa de cloroquina, parecia um padre com a hóstia nas mãos diante de fieis. Ou devotos”, descreve.
E conclui Sílvio Osias: “No Brasil de 2020 as vozes da ciência, os artistas e a imprensa profissional iluminaram os que se permitiram a luz. A pandemia não foi embora em maio, nem em junho, nem em julho, como tantos acreditaram. Passamos dos três milhões de infectados. Passamos dos 100 mil mortos. A morte foi banalizada. Estamos em segundo lugar no mundo, num ranking vergonhoso. Quando tudo isso vai passar?”. É a grande pergunta!!!