Nonato Guedes
No dia 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, o presidente da República, Getúlio Vargas, disparou um tiro contra o coração, manchando de sangue o monograma do pijama e provocando uma comoção sem precedentes na história política nacional. Na mesinha de cabeceira, estava a carta-testamento que ainda hoje ecoa entre remanescentes de um período tumultuado da vida brasileira. A frase que encerra a carta é tida por historiadores como Jaime Klintowitz como a mais tocante: “O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.
Getúlio liderou a Revolução de 1930, foi chefe do governo provisório, presidente eleito pela Constituinte de 1934 e ditador sem disfarce a partir de 1937. Instaurou o chamado Estado Novo, sendo apeado do poder por um golpe militar em 1945. Seis anos depois, voltou ao Catete, eleito democraticamente pelo voto popular. Elegeu-se com 3.849.000 votos, 48% do total, tendo como principal adversário o brigadeiro Eduardo Gomes, que ficou abaixo dos 30%. Klintowitz relata: “Nos quinze anos em que foi ditador, Getúlio Vargas havia flertado com o fascismo, censurado a imprensa e lotado os porões de presos políticos. Ele foi o chefe da única ditadura personalista que o Brasil conheceu. Não eram os anos de chumbo que o eleitorado do “velho” tinha na memória. Via nele o “Pai dos Pobres”, o líder popular que havia enfrentado os patrões e dado ao trabalhador a Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT, em 1934, e também o presidente nacionalista responsável pelos primeiros passos da industrialização do país”.
Na volta ao poder, ficou evidente que o novo mandato seria exercido em terreno conflagrado. Estratégias empregadas com sucesso em outros tempos e circunstâncias já não tinham serventia. Sem o controle da imprensa e da massiva máquina de propaganda do passado seria impraticável reacender o culto à personalidade existente no Estado Novo. Segundo Klintowitz, Vargas pretendeu assumir papel similar ao desempenhado na ditadura: o de árbitro acima das diferenças sociais e políticas. Chegou a montar um ministério multipartidário, de viés conservador, que não convenceu a oposição. No Congresso Nacional, a UDN (União Democrática Nacional), o partido de Carlos Lacerda, mostrava-se barulhenta, incansável, sedenta por um golpe de Estado. O governo era capaz de tomar iniciativas – a Petrobras, a Eletrobras e o BNDE nasceram da caneta de Getúlio, mas esteve na defensiva desde o início. Temia especialmente o humor dos quartéis.
O ano de 54 encontrou o país mergulhado numa crise política de dimensões históricas. Em janeiro, o recém-nomeado ministro do Trabalho, Jango Goulart, propôs dobrar o valor do salário mínimo, causando enorme rebuliço. No mês seguinte, 82 coronéis e tenentes-coronéis assinaram um manifesto contra o que descreveram como descaso do governo diante das dificuldades do Exército. Tinham feito as contas e percebido que, aprovado o aumento proposto por Jango, o soldo do tenente seria o equivalente ao de um salário mínimo. Uma humilhação. Getúlio acatou o manifesto, demitiu Jango e também o ministro da Guerra, que lhe apresentara o documento. A primeiro de maio, numa reviravolta inesperada, o próprio presidente concedeu o reajuste e elogiou Jango como “amigo do povo”. As comemorações do Primeiro de Maio tinham voltado a ser, como no Estado Novo, o palco no qual Getúlio retomava a retórica populista. No palanque, naquele dia, ele anunciou ao trabalhador: “Hoje estais com o governo. Amanhã, sereis governo”.
Diz Klintowitz: “O novo Getúlio ensaiava voltar a ser o velho Getúlio. A engenharia era complicada. Ao mesmo tempo em que prometia benefícios aos trabalhadores, o presidente era forçado a tomar medidas impopulares para combater a ameaça da inflação. Havia greves em várias categorias profissionais, entre elas a dos influentes portuários do Rio, colocando mais lenha na fornalha das tensões políticas”. O governo, em outra frente, sofria desgaste de escândalos políticos e do atentado contra Carlos Lacerda, ferido sem gravidade no pé. O major-aviador Rubens Vaz, que fazia voluntariamente a segurança de Lacerda, morreu. Houve intensa exaltação militar. Getúlio percebeu o estrago que o atentado teria sobre seu destino. “O tiro disparado contra Lacerda me atingiu nas costas”, comentou. A imprensa de oposição acusava o governo de estar debaixo de um mar de lama. Houve pressões para a renúncia, Getúlio resistiu o quanto pôde. Até que efetuou o tiro contra o coração.
Durante muito tempo, no país, o legado de Vargas, a “Carta-Testamento”, foi explorado e utilizado como instrumento de manipulação política pelos que se diziam órfãos ou herdeiros do “getulismo”, ou do “varguismo”. Ou mesmo do “trabalhismo”. Sessenta e seis anos depois da morte do político gaúcho, sobrevivem partidos como o PTB e PDT, que duelaram pelo monopólio do ideário e dos votos supostamente cativos dos getulistas. Mas Getúlio foi convertido em figura histórica, julgada sem maiores paixões e sendo, inclusive, revisitado quanto a papéis que representou como o de “Pai dos Pobres”. O dinamismo da sociedade e do processo político foi decisivo para que, passado meio século, o mito evanescesse na memória coletiva do Brasil. Getúlio não é mais nem retrato na parede.