Linaldo Guedes
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Um gato é um poeta que defende com unhas e dentes seu território (parece muito com certos poetas) e pode também buscar o exílio numa gaveta ou cômoda, somem, aparecem do nada, provocam. A arte deles é a exatidão: nos modos como sabem como pular sem cair, em se movimentar sem derrubar nada, na elegância, no asseio. O poeta, por extensão, pode ser um curioso felino, com excelente faro para as imagens, e também quer o cuidado e a atenção do leitor. Por isso faz das suas e se mete sem restrição.
A analogia entre gatos e poetas acima é de André Ricardo Aguiar, escritor e poeta paraibano, com diversos títulos publicados, atualmente residindo em Rio do Sul, Santa Catarina. “Gateiro” confesso, André acaba de lançar o livro “Da existência enquanto gato”, pela editora Confraria dos Ventos, do Rio de Janeiro.
O livro está estruturado por três seções, somando 32 poemas sobre gatos ao todo. “Como trata de uma busca por um gato universal (para afunilar no gato particular), é mais a ordem dos poemas em si que importa”, explica André Ricardo. A única diferença é a seção menor, feita de haicais. As restantes tratam dos diversos leitmotiv de gatos, de sua essência, seu mistério, suas manias – e da relação com seus donos. “O resto é arte da editora, que soube dar um aparato gráfico de acordo com o tema e confesso que foram felizes na escolha da capa, das divisórias, vinhetas. Então é um livro compacto com um alentado leque de imagens”, completa.
Há tempos que André Ricardo pensava em escrever um livro monotemático, mas não imaginava que seria sobre gatos. “Notei que, catando aqui e ali, tinha alguns poemas e a ideia foi fermentando aos poucos. Eu confesso até que um livro monotemático não me parece tão fixo assim, visto que as grandes linhas de qualquer poesia versam sobre os muitos temas (grandes troncos que se ramificam) da existência. Por que não inserir esses animais tão diferentes e paradoxalmente tão iguais a nós? Pensei então que a associação gato x escritor vai mais além. A própria poesia tem um quê de felino, de misterioso, de arisco. E por criar gatos, achei que seria uma forma de gratidão. Eles me dão teor poético em cada gesto, cada imprevisto”, comenta.
Não pense o leitor do Correio das Artes que escrever sobre gatos é coisa apenas do poeta paraibano. André, inclusive, cita várias referências sobre gatos na literatura universal, senão vejamos:
– Começando por poesia, o Baudelaire tem um ótimo poema sobre gato. Da mesma época na literatura, é impossível não citar O gato preto, do Edgar Alan Poe. Mas eu tenho visto uma maior recorrência na literatura do séc XX. O livro que mais admiro é o Sobre gatos, da Doris Lessing (nome que dei a minha gata), publicado pela Autêntica. São suas memórias de seus inúmeros gatos ao longo da sua vida. Também gosto muito do livro Sobre gatos (mesmo título da Lessing) do Bukowski, O gato por dentro (William S. Burroughs) e Os gatos (T. S. Eliot). O romancista japonês Natsume Soseki escreveu Eu sou o gato, cujo personagem e narrador é um gato e com um estilo que lembra algo de Machado. E aqui no Brasil temos poetas como Roseana Murray, Orides Fontela, Ana Martins Marques, entre outras, que escreveram belos poemas de gatos.
Inicialmente, André decidiu recolher os poemas para uma plaquete. Estava numa fase de experimentar algo artesanal, conseguir alguma grana para pagar umas contas. “E naturalmente, fui descobrindo que tinha quase uns dez poemas já feitos. E não sei se acontece muito com outros poemas, quando a gente fica cercando o tema, o tema torna-se a nossa alma, e tudo contribui. Parece que os poemas estão rentes, num limbo, prontos para serem colhidos. E fui descobrindo um tear de referências, um pouco de lapidação, e os poemas foram chegando”, define.
André Ricardo é “gateiro” assumido. E não é de hoje! Na verdade, é uma relação antiga, embora fragmentada no início. “Na minha família, uma época, convivíamos com cães, animais que sempre minha mãe tinha simpatia. Então gato só tivemos um, e não durou tanto, meu pai deu para parentes distantes. Eu só vim a criar mesmo gato quando me mudei pro Sul. Já gostava muito e sempre tive impulso de adotar um. Acabei adotando dois (Dóris e Yoda). E como todo começo, é uma descoberta de um mundo. Saber tudo sobre eles (mas isso é inesgotável) e sobre cuidados, acertar com o tipo de comida, adquirir vacinas, freqüentar uma pet-shop, etc. Depois, é aquele companheirismo que compensa. Eles são ligados no cheiro, reconhecem em nós algo muito familiar, se tornam amigos, procuram a gente, roçam na gente, pedem comida, brincam. Impossível não amá-los”, detalha.
Para André, ser gateiro é admirar o gato:
– É buscar se aproximar, criar um ou vários, ter a rotina alterada, cercar-se de cuidados, ficar de olho na cartela de vacinas, criar um design de interiores que comporte o gato, deixar que ele decida onde durma, como durma, e tratá-lo com respeito, aceitando sua personalidade (cada gato tem uma) sem impor uma hierarquia, sem possessão. Só assim um gato nos respeita. A ideia de que são frios, interesseiros não é uma realidade. E de quebra, um gateiro se interessa pelo universo felino em tudo: lê revistas e livros, adora documentários sobre gatos, compra mimos, adquire caixas de papelão. E se pode, cria vários gatos. E sente imediata simpatia por outros gatos e gateiros.
Diante da pergunta de porque escrever sobre gatos em tempos de pandemia, André diz que o fundamental é escrever sempre. “Mas como agora estamos vivendo muito mais em casa – digo isso de modo parcial, pois nem todos seguem o que recomendam e o que seria ideal para conter o avanço do coronavírus – o confinamento é um pouco o ambiente doméstico dos gatos que vivem em casa, em apartamento. E observo como a rotina deles parece a mesma coisa, o dia repetido igual ao outro. Mas com um olhar mais atento, não é. Eles criam situações, se mexem e se exercitam, botam a curiosidade em dia, criam simulações de caçadas, brigam de faz de conta, e dormem, dormem muito”, acrescenta. Quando chegou a pandemia o livro já estava escrito. “Não imaginaria soltar este livro numa época em que remodelamos o meio de divulgar e vender livros, sem lançamentos presenciais, sem ver pessoas. É um desafio e me sinto bem em estar propondo uma leitura nova”, observa.
Um livro sobre gatos é bem lúdico, assim como outras obras de André Ricardo, a exemplo de “Chá de sumiço e outros poemas assombrados”. Ele entende o lúdico na forma como constrói os poemas, seja para crianças ou adultos. “Mas como a poesia é um continente habitado por todo tipo de recursos, outras linhas também são fundamentais, como a metáfora, o pendor para a imaginação, o cuidado com a palavra. O trocadilho, por exemplo, cai bem para um projeto infantil, ou mesmo para formas muito breves como o microconto, mas evito o exagero, e mesmo nos poemas mais adultos, quase não uso. Prefiro nem imaginar uma cartilha para um bom poema, apenas sigo certa intuição para olhar as coisas como uma descoberta de outro tom, de outra estirpe. Revolvê-las nas bases, atingir seus ângulos impossíveis ao primeiro olhar. E se o lúdico chegar por alguma via, que tenha uma função na peça lírica ou mesmo no texto de cunho narrativo”, ressalta.
Sobre a Confraria do Vento, do Rio de Janeiro. André afirma que conhece a editora por intermédio de Karla Melo, que leu um ou dois poemas de gatos e sempre admirou. “Não imaginaria que fosse esse livro, anos depois, o primeiro (espero) de outros que quero escrever. O fato é que a sensibilidade da editora (que cria gatos), nossa amizade, e o cuidado gráfico e editorial que a Confraria tem foram fatores que me deixaram bem feliz nessa parceria. Os autores da Confraria sabem da busca ferrenha por uma identidade visual para cada livro, o amor pelo objeto livro”, comenta.
Sobre próximos projetos literários, André tem exercido muito a forma breve, sobretudo o haicai e o microconto. E como tem um perfil no Instagram para publicar um microconto por dia, acaba sendo um laboratório que se impõe.
– E seria lógico cuidar de um livro de microcontos, provavelmente com outros autores, via edital. Vamos ver ainda. Não penso muito adiante, visto que exerço de modo imprevisível a literatura, sem regras, sem um calendário. Tenho cá que depois desse ano louco, volte para a literatura infantil, pois tenho ideias e recursos suficientes para vários livros. E tenho um prazer pela crônica, eu que colaborei muito no jornal A União. Seria muito gostoso tentar um livro de crônica com a reunião de algumas delas e outras tantas inéditas. Um livro sobre livros, na visão do eu, leitor, também. E para a poesia, como demoro muito mais, talvez passe o ano seguinte preparando um livro para daqui a dois anos. E o resto é sombra.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.