Nonato Guedes
A jornalista paraibana Rachel Sheherazade, apresentadora do telejornal SBT Brasil, está fechando um ciclo de quase uma década na emissora de Sílvio Santos – seu contrato expira em outubro e o patrão já avisou que não tem interesse em renová-lo. Propostas para atuar em outras emissoras não faltam. Afinal, Rachel se impôs com garra e perseverança como expoente da mídia nacional. E no papel de figura polêmica, que desperta paixões contra e a favor. Esse, o grande traço de sua personalidade carismática. Curioso é que Sheherazade está sendo punida por desagradar bolsonaristas com opiniões críticas veementes sobre o governo do capitão. Antes, ela era execrada por petistas, que a satanizavam como conservadora e reacionária.
Note-se que as opiniões contra o governo de Bolsonaro não são necessariamente expressas no telejornal SBT. Rachel Sheherazade foi proibida por Sílvio Santos de comentar quaisquer assuntos, apesar de ter sido chamada a São Paulo por ordem expressa de SS por causa de uma análise sobre o carnaval fora de época de João Pessoa, emitida na TV Tambaú, que viralizou na internet e ganhou repercussão internacional. De resto, Sílvio Santos nunca escondeu que é um camelô da comunicação e que tem pavor a criar problemas com governos, dos militares da ditadura à Era petista, desembocando, agora, na Era do Jair. O nome de Rachel, independente dos humores do dono do baú, está consolidado. Ela é estrela de primeira grandeza no quadro de influenciadores digitais ou da comunicação brasileira. Portanto, sai vitoriosa da experiência no SBT, goste-se ou não do seu estilo.
Numa entrevista a Leo Dias, que ganhou destaque no domingo em canal do YouTube, Rachel confessa que está passando por um turbilhão de emoções, observando que o SBT foi sua segunda casa, onde ingressou em março de 2011. Praticamente uma vida dedicada à emissora. “Deixei para trás toda a minha história na Paraíba e vim tentar a vida em São Paulo. Não tinha parentes nem conhecidos. Fiz dos amigos do SBT a minha família”, comentou Rachel, notando que a despedida já está doendo. Mas ao mesmo tempo se sente cheia de esperança e de energia. Na sua cabeça, inúmeros projetos, em diferentes plataformas. “Sinto-me livre para desempenhar outros papéis, em outras emissoras, trilhar caminhos novos”, definiu.
Rachel abomina “correntes”, como a jornalista deixou claro, mencionando um pensamento de Nietzsche. Ela demonstra amadurecimento à medida que reconhece as limitações da chamada liberdade de imprensa, referindo-se à palavra final que sempre costuma ser das empresas, em termos editoriais. Revela que vinha sentindo “sinais” de desgaste na relação com o SBT, inclusive na relação pessoal com Sílvio Santos, que sempre pareceu tratá-la com deferência mas que, aos poucos, foi mostrando os “dentes” na direção de Sheherazade, tolhendo seu livre pensar, seu livre dizer. Numa das ocasiões, de público, no programa que apresentava no SBT, Sílvio Santos expressou que Rachel fora contratada para ler matérias, não para comentar assuntos.
Na verdade, pelo que se depreende da sua trajetória, no início, em São Paulo, ela representou bem o figurino como âncora do principal telejornal do SBT, dividindo a bancada com nomes de expressão como Carlos Nascimento, que se notabilizou pela sua atuação na TV Globo. A controvérsia foi incorporada ao seu perfil a partir do momento em que derivou para o terreno da opinião – nem sempre aprofundada, como convém ao timing de televisão. Ganhou capas de revistas de circulação nacional e de publicações especializadas em comunicação e entretenimento e chegou a fazer comentários fortes que surpreenderam o seu público cativo. O resultado inevitável do comportamento foi que Sheherazade contrariou interesses, provocou polêmicas acirradas em redes sociais, num clima de verdadeiro Fla x Flu político-ideológico, trazendo “dissabores” para o patrão Señor Abravanel.
Qualquer dono de empresa de mídia ou de comunicação enxergaria no biótipo de Sheherazade um filão inesgotável para alavancar audiência e faturamento – menos Sílvio Santos, que sempre foi extremamente ignorante nessas questões e subserviente aos governantes de plantão, temeroso quanto ao poder da caneta que assegura a permanência das concessões para o funcionamento de canais de TV. A sua relação com a jornalista paraibana azedou de forma tal no governo Bolsonaro que ele se sensibilizou com a pressão em forma de chantagem feita por bolsonaristas para tirar Rachel de circulação. O carrasco mais visível de Sheherazade, como ela admitiu no depoimento a Leo Dias, foi o empresário Luciano Hang, da Havan, que chegou a pedir de público a cabeça de Sheherazade, acusando-a de criptocomunista e até mesmo de impatriótica. Hang é um dos bajuladores de Bolsonaro e foi arrolado no rosário de investigados da CPI de fake news.
Rachel está deixando o SBT porque cruzou a fronteira do limite permitido pelos donos de órgãos de comunicação no Brasil e no mundo. Foi certamente ingênua ao desafiar a lei do absolutismo das direções sobre a prevalência de redações ou de opiniões de jornalistas. Mas o espírito rebelde lhe dá uma aura sedutora na tristemente empobrecida conjuntura nacional dos últimos tempos, abstraindo conceitos ideológicos ou filosóficos de qualquer natureza. Sheherazade cravou seu nome na história do jornalismo brasileiro e deixa um legado de contribuição ao debate, ao pluralismo, cada vez mais urgente e essencial nesse novo prenúncio de trevas no horizonte verde-amarelo. Tem espaço garantido no epicentro das discussões nacionais. E em posição de destaque, diga-se de passagem.