Nonato Guedes
A participação do ex-governador e ex-prefeito Ricardo Coutinho nas eleições à prefeitura municipal de João Pessoa neste ano de 2020 tem se constituído em verdadeira “odisseia”, pela multiplicidade de problemas e conflitos que tem atraído. O nascedouro da candidatura, em si, já foi pontuado de dúvidas quanto à elegibilidade de Coutinho, diante de processos em tramitação na Justiça, arrolados no âmbito da Operação Calvário, que investiga uma organização criminosa supostamente chefiada por ele, conforme inquinado pelo Ministério Público, tendo como pano de fundo desvios de recursos da Saúde e da Educação na administração pública que RC pilotou até 31 de dezembro de 2018 no Estado. Aos problemas éticos que, sem dúvida, desgastam a postulação, somam-se dificuldades de consolidação de apoios políticos, de tal sorte que, para fugir do isolamento, Ricardo ainda mendiga na Justiça Eleitoral o reconhecimento de uma aliança com o PT, de cujo tempo necessita para se defender das acusações que lhe são atribuídas.
A opinião pública paraibana, na verdade, não ficou propriamente surpresa com a urgência de Ricardo em se candidatar a uma prefeitura que ocupou por uma vez e largou antes do final, na segunda vez, embalado pelo projeto de ser governador do Estado. Conquanto estivesse recente o período de dois mandatos no governo estadual, levou-se em conta entre os analistas políticos e a mídia em geral que Ricardo optou por não se candidatar a senador ou a deputado federal em 2018, preferindo permanecer no exercício do governo até o último dia do mandato, a pretexto de não ver desmoronar o projeto que ambicionara ou perseguira nas urnas. Com isto, Coutinho ficou sem tribuna para fazer a própria defesa diante de acusações ou críticas que eventualmente fossem feitas à sua Era. Mas o que surpreendeu de verdade a Paraíba foi a associação da figura de Ricardo a escândalos administrativos, como o desvio de verbas públicas. Não era este o seu perfil – e a surpresa estendeu-se ao plano nacional, onde houve quem o enxergasse como um líder emergente forjado no estigmatizado Nordeste.
A revelação de fatos escabrosos sobre drenagem de dinheiro público para interesses pessoais e de grupo com vistas ao enriquecimento ilícito colocou a nu uma faceta até então inteiramente desconhecida da população brasileira. Esse foi o baque maior, em primeiro lugar, experimentado pela sociedade paraibana, que até então fiava-se na retórica de Ricardo sobre estar implantando um projeto revolucionário, que contrariava interesses influentes e poderosos porque desconstruía práticas arcaicas e reprováveis como a do fisiologismo, remanescentes da dominação coronelística que imperou por bastante tempo na conjuntura de poder da Paraíba e, por extensão, do Nordeste. Ricardo procurou se apresentar como paladino da modernidade e como arauto de reformas estruturais que sempre foram postergadas devido à cupidez das elites tradicionais sem compromisso direto ou mediatizado com o povo.
Este era o figurino que começou a chamar a atenção e a ser reparado com interesse por figuras interessadas com a renovação concreta dos costumes e com a derrubada dos muros oligárquicos que teimavam em sobreviver na Paraíba e no Nordeste. Coincidiu que em nível nacional e, mesmo internacional, estava em curso a revolução digital, com facilidades enormes de apropriação de bens culturais e de acesso à informação pelos segmentos da sociedade, estabelecendo-se uma espécie de democracia de massas que substituía ou postulava substituir o predomínio do velho coronelismo. Não houve tempo nem visão crítica para perceber que, na prática, a revolução apregoada era o “novo coronelismo”, amparado na velocidade da transmissão de informação e conhecimento e no potencial de alcance e visibilidade das redes sociais que decretaram a extinção da imprensa escrita.
O “novo” perfil de Ricardo materializou-se no seu alinhamento, para chegar ao poder, com esquemas tradicionais que dizia combater, a exemplo do esquema liderado pelos Cunha Lima, que tinham na figura do ex-governador Cássio a encarnação de um estilo vigente há décadas no cenário paraibano e nacional. Sobre a composição feita com o “clã” campinense, no afã de destronar José Maranhão, que já empalmava a condição de tríplice coroado à frente do poder estadual, Ricardo Coutinho produziu a narrativa de que a “aliança foi correta e necessária”. E, de fato, ela se fez válida do ponto de vista de reforçar o expoente da “nova Era”, não o deixando entregue às feras, sem lenço e sem documento para levar à frente uma jornada que rotulava como inovadora.
Ricardo, infelizmente, não representou o novo que se anunciava no horizonte político-administrativo da Paraíba. Revelou-se sagaz e esperto o suficiente para usar aliados de ocasião em benefício de ambições pessoais bem definidas e que estavam a um passo de ser conquistadas, dentro da evolução natural do quadro no Estado, com o desgaste de partidos e líderes submetidos à inescapável fadiga de material que acomete a todos, de forma cíclica. Vitorioso obstinadamente em 2004, 2008, 2010, 2014, 2018, Ricardo tenta recomeçar não mais como o “novo” mas como o “experiente diferente”. Esta é a versão mais enganosa e, por óbvio, mais difícil que ele consegue representar. Pode ser a pá de cal na sua trajetória política, que tinha tudo para ganhar uma narrativa brilhante, até atolar no lamaçal em que já chafurdaram outras figuras carimbadas, inclusive, da política nacional, que estão de volta por aí, pelas esquinas. Ricardo encena em 2020 o melancólico papel de falso mito, de ídolo de pés de barro. Não tem nada de novo a dizer. Nem autoridade, por exemplo, para falar sobre Saúde Pública. Seria até uma heresia abordar esse tema, o que explica a metamorfose ambulante que ele vive, a duras penas.