Nonato Guedes
Foi com uma bravata – “o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade” – que o presidente Jair Bolsonaro voltou à cena para polemizar sobre a pandemia de Covid, uma grave questão de Saúde Pública, não apenas no Brasil mas em todo o mundo, que, justamente por causa disso, exigiria a mediação de lideranças sensatas, equilibradas, focadas verdadeiramente no interesse coletivo. O desaguisado de agora decorreu do anúncio do Ministério da Saúde de Bolsonaro sobre protocolo de intenções para compra de 46 milhões de doses da vacina que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan, do governo paulista, e pela farmacêutica chinesa Sinovac.
O ministro da Saúde de Bolsonaro, Eduardo Pazuello, divulgou o tal protocolo após participar de uma reunião com governadores, entre eles João Doria, de São Paulo, do PSDB, a quem o Butantan é vinculado. Na nova tempestade ensaiada, o presidente reeditou uma prática que parecia adormecida – a de testar limites de sua autoridade, como se ela estivesse em jogo, numa clara demonstração de insegurança sobre a abrangência do seu poder de mando. Conspirou para o “teatrinho” particular de Bolsonaro a insistência de governadores adversários, como Doria, em politizar uma grave questão, deixando de lado o interesse público crucial. O protocolo firmado com o Butantan soou como provocação aos ouvidos de Bolsonaro, ainda que o secretário-executivo da Pasta, Elcio Franco, tenha dito que ele não possui caráter vinculante e que não há mesmo a intenção de adquirir vacinas chinesas.
Se a questão do protocolo tivesse sido tratada diretamente entre presidente da República e governadores de Estados, com a participação, é claro, do ministro da Saúde, um mal-estar decorrente de um mal-entendido teria sido evitado e o governo federal poderia, até mesmo, flexibilizar na questão das vacinas. Nesse ponto, Bolsonaro tem razão: a premissa para aquisição de qualquer imunizante passa pela segurança, eficácia, produção em escala e preço justo. No caso da CoronaVac, ainda se encontra em fase de testes, carecendo, portanto, que sua eficácia seja cientificamente comprovada antes que o uso seja liberado no país. De resto, outras vacinas estão tendo fabricação anunciada, com procedências diversas, e seria rematada precipitação por parte do governo brasileiro priorizar quem quer que seja, no escuro.
Infelizmente, parece interminável o embate político que se formou entre governadores de Estados importantes e governadores de regiões como o Nordeste e o presidente Jair Bolsonaro. É uma tensão permanente, viralizada, que mais do que incomodar a sociedade gera preocupação quanto à segurança sanitária futura nas etapas subsequentes do enfrentamento ao coronavírus, a principal delas a vacinação em massa como forma de prevenir o contágio. O Planalto deu sua quota de colaboração para confundir tudo e não esclarecer absolutamente nada ao massificar que a vacina não será obrigatória. O contraponto dessa assertiva é a constatação de que a maioria da população quer ser imunizada contra a Covid-19. As razões para tanto são óbvias demais, mas é possível acrescentar que a população como um todo está ansiosa para sair do estado de indefinição em que se encontra e que não provoca reflexos apenas na saúde, mas, também, na economia, com a paralisação de atividades essenciais a um custo muito alto para qualquer país do mundo.
Incentivar a vacinação em massa contra a covid-19 seria o mínimo que o presidente Bolsonaro poderia fazer para se redimir da postura extremamente negacionista que tomou quando da eclosão da pandemia, ocasião em que chegou a afirmar tratar-se de uma “gripezinha”. O contencioso acumulado pelo governo na questão é de grande teor e envolve até mesmo o mau exemplo dado pelo presidente da República em inúmeras oportunidades, quando participou de aglomerações e sem o uso de máscaras de proteção, em situações nas quais a aglomeração era proibitiva sob todos os títulos e o uso de máscara era o único elo de proteção contra a epidemia. No exterior, enquanto isso, a postura negacionista do Brasil praticamente isolou-o no concerto dos demais países, inclusive Estados Unidos, com cujo governo o presidente Bolsonaro vinha sustentando alinhamento quase que incondicional. É preciso ressaltar, ainda, o episódio das demissões sucessivas de ministros da Saúde, começando por Luiz Henrique Mandetta, alcançados pelo excesso de autoridade daquele que precisa repetir o tempo todo que “o presidente sou eu”.
O final do ano está se aproximando, o que significa que já houve tempo de sobra para um aprendizado em torno da realidade imposta pela eclosão de Covid-19, bem como para uma reflexão ponderada e racional das diversas lideranças políticas, autoridades e especialistas, sobre medidas a serem tomadas de agora em diante para manter o mínimo de estabilidade numa situação que emergiu desoladora para todos. A própria eleição para prefeito já se aproxima no calendário, dando sinais de que conseguiu atravessar o enredo das paixões que poderiam se agravar em plena pandemia. Não é justo que por causa da vacina à vista se venha pôr a perder todo o esforço para minimizar os danos da calamidade que se abateu sobre o mundo, virando-o de cabeça para baixo.