Nonato Guedes
É deprimente a guerra travada abertamente por políticos no Brasil, interessados em tirar proveito da paternidade de distribuição das vacinas contra a Covid-19. O ano de 2020 já foi doloroso demais para a sociedade em todo o mundo e é inconcebível que, no Brasil, ao invés de preparação massiva para um plano eficaz de imunização de grupos de pessoas em 2021, o governo federal e governos estaduais estejam se digladiando sobre a paternidade da distribuição de medicamentos que ainda estão em fase de desenvolvimento ou de testagem no exterior. Se por um lado é válida a “corrida pela vacina”, no sentido de incluir o Brasil no grupo mais amplo possível de países de posse dos imunizantes, por outro lado é condenável a proliferação de brigas entre autoridades federais, estaduais e municipais, sejam de que partidos políticos forem.
O presidente Jair Bolsonaro, que andava desimportante no cenário de poder nacional, até por não ter participado ativamente de eleições para prefeitos (as primeiras do atual mandato), farejou na polêmica sobre as vacinas uma oportunidade de ouro para retomar a evidência. E, bem ao seu estilo, aceitou de bom grado comprar briga com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que tem planos políticos nitidamente expansionistas e opera ostensivamente com vistas a se adiantar ao próprio Palácio do Planalto no pioneirismo da vacinação em massa de grupos sociais de risco ou vulneráveis, por diferentes fatores, diante da calamidade da pandemia. Ora a discussão é sobre a disponibilização de recursos para aquisição de vacinas gratuitas, ora passa pela preferência de laboratórios que estão leiloando imunizantes, ora, enfim, pela obrigatoriedade de certificação por parte da Anvisa, a agência nacional de vigilância sanitária, para que os lotes sejam carimbados e, consequentemente, repassados.
Bolsonaro, é claro, dá – como sempre – a contribuição maior para gerar tumulto e controvérsia, mas governadores como João Doria e Flávio Dino, este do Maranhão e filiado ao PCdoB, não estão isentos de parcela de culpa pela marcha da insensatez que é ensaiada no País, agora a pretexto da distribuição da vacina que passou a ser produzida em escala avançada. Claro que deve haver obrigatoriedade de certificação, por parte da Anvisa, sobre a eficácia e segurança das vacinas que forem ofertadas à população – nesse ponto, não há, constitucionalmente, como Estados e municípios burlarem a exigência. A certificação é o atestado oficial de validade dos imunizantes e isto é indispensável num País que tenha por regra máter o respeito à Ciência. O Brasil, infelizmente, não é um país onde o presidente da República respeite a Ciência e talvez esteja aí boa parte da soma dos problemas em que o país patina desde que os efeitos da Covid-19 chegaram neste território.
O que dificulta a confiabilidade na postura do governo federal é exatamente o negacionismo escancarado que ele assumiu desde a disseminação do novo coronavírus. Não foram poucos os pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro contradizendo prognósticos de especialistas de renome acerca de dimensões de gravidade da pandemia que estava desabando sobre a humanidade. O presidente foi ostensivo no negacionismo dentro do próprio governo, entrando em choque com sucessivos ministros da Saúde, ao mesmo tempo em que a escalada de disseminação da epidemia avançava pelo território nacional, incidindo com reflexos mais intensos em regiões historicamente penalizadas pela má distribuição de recursos públicos ou por desigualdades sociais gritantes acumuladas ao longo da História no Brasil.
Pode-se alegar que, no final das contas, chamado à colação, o governo federal acaba cumprindo sua parte, ou seja, comparecendo com a obrigação de socorrer vítimas e equipar, dentro das condições viáveis, a estrutura de suporte hospitalar focada no atendimento a legiões de famílias carentes ou absolutamente vulneráveis, quando não já deserdadas da justiça social numa Nação repleta de iniquidades e discriminações de toda ordem. Não interessa que haja, ao final dos contenciosos, o registro da presença do Estado no cumprimento de encargos que lhe são delegados, nos termos da própria Constituição. O mais importante era que não houvesse polêmica sobre o dever inerente ao poder público, seja qual for a esfera. A controvérsia, muitas vezes alimentada artificialmente por políticos com interesses subalternos, só se presta, de verdade, à dispersão de energias, ao desvio de atenções no que diz respeito à prioridade máxima que é salvar ou preservar vidas em momento atípico.
Ainda agora, o conselho nacional de secretários de saúde dos Estados e municípios pugna por uma estratégia nacional unificada que seja fulminantemente eficaz no plano de vacinação contra o novo coronavírus. Ninguém mais credenciado a assumir esse papel histórico do que o Brasil, pela peculiaridade com quem é respeitado mundialmente por causa de bem-sucedidas campanhas de vacinação contra outras doenças que foram desencadeadas de forma massiva em outras fases da vida nacional. Os antecedentes autorizavam essa aura, essa expectativa propícia, favorável – não fosse a circunstância de estar no comando da Nação um homem que já provou que não tem vocação e muito menos estatura para liderar. O Brasil vai sair dessa crise, como saiu de outras, também graves na dimensão. Mas poderia pagar um preço que não custasse tão caro por culpa da incúria das elites políticas que governam o país. De há muito os males do Brasil não são apenas as epidemias – mas, sobretudo, o egoísmo e a cupidez dos políticos.