Nonato Guedes
Os sertões e os cariris velhos da Paraíba são pródigos em oferecer ao mundo personagens de uma extração especialíssima, diferenciada, muito rara. Como o professor e historiador Balduíno Lélis, que faleceu, ontem, em Vila de Batalhão (Taperoá). Autodidata, dedicou sua vida à Cultura, enveredando pelos ramos da arqueologia, da paleontologia, e pela memória do povo paraibano. Mencionado pela Enciclopédia Britânica como pesquisador relevante, era comum ter notícias de Balduíno incursionando por sítios arqueológicos das itacoatiaras do Ingá. Ou ir a Tóquio, no Japão, como conferencista-convidado de Universidade renomada, para dissertar sobre as baleias pleitoscênicas. Havia em torno dele toda uma aura de erudição, superando a instrução formal, que não passou do primário numa escola da rede pública em sua cidade.
O feito mais rumoroso de Balduíno Lélis, que mobilizou segmentos da sociedade paraibana, foi indiscutivelmente a Universidade Leiga do Trabalho, onde os conhecimentos sobre a realidade eram repassados de gerações para gerações, dentro da meta de perpetuar a essência das coisas e das imensas riquezas naturais encravadas no território paraibano. Muitas das valiosas informações colhidas e incorporadas ao manancial sob a guarda de Balduíno eram praticamente extraídas a fórceps, na rudeza das circunstâncias derivadas de conjunturas adversas que assolam o povo nordestino e, em especial, o povo paraibano. A Universidade Leiga se propunha a elaborar diagnósticos incontestáveis, espécie de radiografia sobre a calamidade cíclica das estiagens neste “hinterland” e suas consequências não apenas sobre o meio ambiente mas sobre a formação do povo, vítima maior da escassez de tudo.
Balduíno contava-nos que a ideia de uma Universidade Leiga do Trabalho fora inspirada pela indignação com o constante êxodo rural que é característico do Nordeste e que tem sido responsável pela evasão de braços e de talentos para centros maiores do Sul e Centro-Sul do país, onde a exploração do homem pelo homem ganha contornos aguçados, na esteira das desigualdades econômicas e sociais embutidas nos modelos elitistas de concentração de renda que têm sido legados pelas elites ambiciosas. Para ele, com a sensibilidade de homem do interior, além de frear o desperdício, ou o despovoamento de solos férteis, ainda que eventualmente inservíveis para o desenvolvimento, urgia inserir no mercado de trabalho contingentes que amanhando a terra com invulgar destreza e dedicação, tinham competência para erguer, aqui ou lá fora, cinturões de progresso. A condição imposta, na opinião desse visionário, era que o progresso fosse partilhado, dividido entre aquelas camadas que, mesmo contribuindo para tal, são frequentemente marginalizadas.
Sem a obsessão de fixar-se em rótulos ideológicos, muito menos de apregoá-los a plenos pulmões em rodas intelectuais que frequentava com desenvoltura invejável, o reitor da Universidade Leiga do Trabalho prodigalizou muito mais avanços no campo da Educação e da Cultura do que certos personagens que laureados por títulos e prebendas variadas jactam-se de falsa superioridade e, de concreto, não deixam nenhuma contribuição em benefício do povo. Conheci Balduíno Lélis quando me tornei assíduo na Associação Paraibana de Imprensa, mercê das minhas funções como vice-presidente, na gestão de Severino Ramos, e, depois, como presidente, sucedendo a Carlos Aranha. Quando não ia ao gabinete, Balduíno encontrava-me no restaurante da entidade, e se fazia arauto de conversas intermináveis, em que discorria com versatilidade sobre todos os temas possíveis e imaginários – da descoberta dos dinossauros no Vale de Sousa à engrenagem da política que move este Brasil de Mãe Preta e Pai João.
Sócio fundador e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri, Balduíno era infatigável na propaganda de feitos que careciam ser explorados pela sua significação para a história e a evolução da Paraíba e do Nordeste. A Universidade Leiga do Trabalho passou a ser o carro-chefe da sua doutrinação, em razão da atipicidade do empreendimento que, diga-se de passagem, ganhou repercussão não apenas nesta região, mas na mídia sulista. Eu mesmo deixei-me convencer pelo visionário dos Cariris e fui a Taperoá conhecer o embrião do trabalho que tinha a sua assinatura inconfundível. Era tudo muito artesanal, mas com qualidade indiscutível. E, mais importante do que tudo, pairava o idealismo de bandos de jovens e velhos atraídos pela perspectiva de fazer História e construir algo de novo, experimentos que mudassem a triste realidade do interior paraibano.
Pena que o Poder Público, geralmente refratário a iniciativas populares, tenha faltado com sua colaboração decisiva que impulsionaria empreendimentos como o de Balduíno, tornando-os referência no resto do Brasil e no mundo inteiro. Quando passei a atuar em “A União”, ora como editor, depois como superintendente, por último como colunista político, o reitor da Universidade Leiga do Trabalho continuou a procurar-me, ora para repassar informações do que acontecia nos cariris, ora para persuadir-me a abraçar as suas novas campanhas em prol do povo sofrido. No fundo, queria sensibilizar os donos do “pudê”. A Paraíba já imortalizou Balduíno Lélis.