Nonato Guedes
O Brasil, infelizmente, continua sendo o país da impunidade, como registrou em livro de repercussão o saudoso jornalista paraibano Sebastião Barbosa. Uma reportagem assinada por Edson Sardinha no site “Congresso em Foco” revela que, ontem, completou 1.300 dias de tramitação na Câmara dos Deputados, sem qualquer perspectiva de tramitação, a Proposta de Emenda Constitucional que acaba com a prerrogativa de milhares de autoridades de serem julgadas apenas a partir da segunda instância da Justiça. O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ambicionou entrar na História, sai dela menor, por omissão em casos como o da PEC do fim do foro privilegiado. Poderia ter comandado uma ofensiva vigorosa com resultados concretos, mas se acovardou e deixa inconclusa a questão.
Originalmente, o texto foi aprovado pelo Senado em 31 de maio de 2017. Passou em 26 de junho daquele ano pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Em 11 de dezembro de 2018, foi aprovado pela comissão especial criada para analisar seu mérito. No entanto, nos últimos 747 dias, a Proposta de Emenda Constitucional ficou engavetada. Rodrigo Maia simplesmente não pautou os pedidos apresentados pelos deputados para acelerar a votação em plenário – e eles não foram poucos. A avaliação é de que Maia não considerou prioritária a análise da PEC e preferiu deixá-la na gaveta para seu sucessor. Os candidatos ao comando do Legislativo, todavia, ainda não se posicionaram publicamente sobre o tema. Só lembrando: a prioridade máxima de Rodrigo parece ter sido o empenho a que se atirou para garantir seu direito à reeleição como dirigente da instituição. Essa pretensão veio por água abaixo quando o Supremo Tribunal Federal proibiu a recondução, tanto do presidente da Câmara quanto do presidente do Senado (atualmente, Davi Alcolumbre, do DEM-AP) para mandatos subsequentes.
A luta por causas próprias não impediria Rodrigo Maia de ter avançado no encaminhamento da PEC sobre o fim do foro privilegiado, como situação mais grave – a pandemia do novo coronavírus, não impossibilitou o Congresso Nacional nem Casas Legislativas de todo o país de realizarem sessões e votações de matérias urgentes, de interesse popular, utilizando o recurso da videoconferência em sessões remotas que, estas, sim, entraram para a História. Sabe-se que em setembro um grupo de 26 senadores encaminhou ofício ao deputado Rodrigo Maia pedindo a votação da Proposta de Emenda Constitucional e associando a necessidade de apreciação da PEC ao caso da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de mandar matar o marido, o pastor Anderson do Carmo.
O presidente da Câmara alegou que a prioridade este ano era o enfrentamento da pandemia, com medidas mitigadoras dos efeitos econômicos provocados pela covid-19, e as reformas tributária e administrativa. Rodrigo Maia estava blefando. Na prática, as reformas tributária e administrativa não avançaram, como pode testemunhar o deputado federal paraibano Aguinaldo Ribeiro, do Partido Progressista, relator da matéria tributária, que mesmo tendo praticamente concluído seu trabalho preliminar, não encontrou ainda ambiente adequado para dar celeridade, sequer, à discussão, a despeito da relevância indiscutível do assunto, já que se trata de corrigir distorções que estão enraizadas no sistema político-institucional brasileiro e que prejudicam tanto a União como os Estados e municípios. Infelizmente, Rodrigo Maia deixará lacunas que, em última análise, poderiam ter sido preenchidas se prevalecesse, para valer, o compromisso com o interesse público.
O fim do foro privilegiado é, por assim dizer, uma medida pedagógica de combate à corrupção. Um estudo produzido pela Consultoria Legislativa do Senado mostrou que atualmente mais de 54 mil pessoas são beneficiadas de alguma forma de foro privilegiado. O texto aprovado pela Casa acaba com o foro privilegiado em caso de crimes comuns para deputados, senadores, ministros de Estado, governadores, ministros de tribunais superiores, desembargadores, comandantes militares, embaixadores, integrantes de tribunais regionais federais, juízes federais, membros do Ministério Público, procurador-geral da República e integrantes dos conselhos de Justiça e do Ministério Público. Sendo assim, todas as autoridades e agentes públicos hoje beneficiados pelo foro responderão a processos iniciados nas primeiras instâncias da Justiça Comum. As únicas exceções são os chefes dos três poderes da União (Executivo, Legislativo e Judiciário) e o vice-presidente da República. O autor da PEC é o senador Álvaro Dias, do Podemos-PR. Ele foi às redes sociais, ontem, cobrar a votação da matéria. “Há 1.300 dias esperamos para que o projeto que acaba com os privilégios das autoridades saia da gaveta de Rodrigo Maia. Não sabemos quanto tempo ainda teremos que esperar, mas uma coisa é certa: nossa persistência diária nos trará a motivação para lutar por uma justiça que seja igual para todos. Seguiremos tentando e somos gratos pelo apoio de todos vocês”, escreveu.
Levantamento publicado pelo “Congresso em Foco” em maio atestou que pelo menos 106 deputados e 27 senadores são alvos de investigação na Justiça. A pesquisa exclusiva foi feita pelo site nas bases de dados do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais eleitorais e de Justiça estaduais e levou em conta inquéritos e ações penais e eleitorais que tramitam nessas instâncias. Fica no ar a pergunta: não terá sido por causa dessa estatística que Rodrigo Maia freou o avanço de medidas pedagógicas contra privilégios e abusos de autoridade? Não é nada, não é nada, mas o corporativismo ainda é muito latente na classe política brasileira.