Nonato Guedes
Sustentada com afinco pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e repetida à exaustão como mantra por liderados do pajé petista, a teoria de que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foi um golpe político deve ganhar algum reforço quando vier a público o livro do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ainda cumprindo pena de prisão, em que retrata Michel Temer como “o grande conspirador” da articulação que pôs fim ao governo em 2016. Expoente do PMDB-MDB, atualmente alinhado com o bolsonarismo, Temer era o vice-presidente de Dilma e teria atuado ativamente para tomar o lugar da petista, segundo antecipa a coluna Radar, da revista “Veja”. O livro de Cunha tem 740 páginas e o título “Tchau Querida, o Diário do Impeachment”. Eduardo Cunha está preso desde 19 de outubro de 2016, quando caiu nas malhas da Operação Lava Jato.
Além de Temer, o livro deve trazer revelações bombásticas acerca da atuação de Rodrigo Maia (DEM-RJ), que assumiu a presidência da Câmara Federal logo após a deposição da então mandatária. Maia está finalizando seu último mandato como presidente da Casa – ele se mobilizou para tentar uma recondução, mas a pretensão foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal. Nos acontecimentos que agitaram o meio político-institucional brasileiro em 2016, Rodrigo queria ser relator da Comissão Especial do impeachment, mas teria sido vetado por Cunha, que acreditava que ele não teria forças para a tarefa, de acordo com o que está relatado na aguardada e polêmica obra. A rigor, a revelação de que Temer operou para viabilizar o desideratum do impeachment não chega, propriamente, a surpreender. Por mais que ele negue, sempre se suspeitou do seu interesse em ascender à chefia da Nação por vias oblíquas, mediante o afastamento de Dilma.
Essa constatação não elide, porém, o fato de que a ex-presidente foi quem mais contribuiu para a própria degola, fornecendo o pretexto da prática de pedaladas fiscais que embasou o argumento do Tribunal de Contas da União para fazer sérias e gravíssimas acusações sobre balancetes do governo, então maquiados de forma ilegal ou absolutamente anti-republicana. Ainda que se afirme que o impeachment foi uma orquestração política – e todo impeachment tem essa conotação – ele só prosperou porque havia fatos incriminadores da conduta da presidente. Em última análise, o próprio Lula, “guru” de Dilma, em algumas entrevistas, mesmo insistindo na teoria do “gólpi” (sic), desabafou sobre falta de habilidade da ex-mandatária na relação política. As dificuldades de Dilma em atender a demandas de líderes políticos provocaram queixas constantes, comprometendo a própria governabilidade.
Dilma não teve humildade suficiente para conduzir-se à frente do poder. Ficou deslumbrada desde que em 2010, graças à influência então indiscutível do presidente Da Silva, logrou entrar na História como a primeira mulher eleita presidente da República no Brasil. Das coisas aparentemente mais simples – como a exigência em ser tratada como “presidenta” – às mais complexas, na área econômica ou no campo da diplomacia externa, com quem não tinha intimidade, a sra. Rousseff deu empurrões que facilitaram a própria queda. Nas vésperas do impeachment, uma reportagem de capa da revista “IstoÉ”, aludindo a explosões raivosas da mandatária, classificava Dilma como uma presidente “fora de si”. Os bastidores do Planalto por aqueles dias, segundo a matéria de Sérgio Pardellas e Débora Bergamasco, mostravam que a iminência do afastamento fez com que Dilma perdesse o equilíbrio e as condições emocionais para conduzir o país. “A presidente se entope de calmantes desde a eclosão da crise mas os medicamentos nem sempre surtem efeito, segundo atestam auxiliares”, noticiava a revista.
Pior do que o desespero para escapar da guilhotina do impeachment foi a estratégia kamikaze montada pela presidente com o fito de sobreviver no poder e evitar incorporar uma nódoa à sua biografia. A mesma revista “IstoÉ” que tratava do desespero de Dilma abordava o balcão de negócios em que havia se transformado o Palácio do Planalto, com o vale-tudo em que era entregue até o que não se tinha, contanto que a sucessora de Lula permanecesse no cargo. “Como numa feira livre, além de distribuir R$ 50 bilhões em emendas e negociar milhares de cargos, o Planalto oferece R$ 1 milhão por cada voto favorável e R$ 400 mil para o parlamentar que se prestar ao covarde papel de se ausentar da votação”, acrescentava a reportagem da revista, arrematando: “No contexto da crise econômica atravessada pelo país, o que Dilma e Lula promovem a céu aberto é, para dizer o mínimo, escandaloso”. A contra-ofensiva deletéria já era mais ou menos conhecida dos brasileiros, que se lembravam da orgia perpetrada por Fernando Collor em 1992 para safar-se do impeachment originado pela descoberta do esquema PC-Farias. O balcão de Collor foi inútil como o de Dilma também foi.
Ainda que o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tenha perfil de político desacreditado – mesmo quando dirigia aquela instituição – e esse perfil tenha se agravado com sua prisão pela Lava Jato e a perda definitiva do mandato, o seu depoimento para a História sobre o processo de impeachment é importante ou fundamental porque resgata histórias que a opinião pública ignorava e que têm relação intrínseca com práticas anti-éticas vigentes nas últimas décadas no país. Claro que ninguém vai esperar confissão de culpa da parte de Eduardo Cunha – em casos assim, a tendência é a autoglorificação. Mas sempre é possível ler nas entrelinhas o que não está dito nas manchetes ou no “lead” de versões jornalísticas sobre acontecimentos memoráveis. Esse encontro com uma parte da verdade ajudará o país a se reencontrar com a verdade plena por trás das explosões que viraram de pernas pro ar o cenário institucional brasileiro.