Nonato Guedes
Em junho de 1977, o então PMDB ocupou cadeia nacional de rádio para fazer seu programa partidário garantido por Lei, apesar da vigência da ditadura militar. Falaram Ulysses Guimarães, Paulo Brossard, Alceu Collares e Alencar Furtado. O mais contundente foi Alencar Furtado, então com 51 anos e deputado federal pelo Paraná, membro do grupo “autêntico”. À certa altura ele clamou por democracia, por liberdades públicas, “para que não haja no Brasil lares em pranto; para que as mulheres não enviuvem de maridos vivos, quem sabe, ou mortos, talvez – viúvas do quem sabe e do talvez, para que não tenhamos filhos de pais vivos ou mortos, órfãos do quem sabe e do talvez”. O presidente Ernesto Geisel cassou o deputado, o último a sofrer punição através do AI-5. “O episódio entrou para a nossa história política”, escreveu o jornalista Sílvio Osias em seu blog no Jornal da Paraíba online. Alencar Furtado morreu, ontem, aos 95 anos, em Brasília. Estava hospitalizado com um quadro agudo de insuficiência renal.
Horas antes da cassação, Alencar Furtado encontrava-se na estância termal de Brejo das Freiras, no sertão da Paraíba. Repórter da rádio Alto Piranhas e da sucursal do jornal “Correio da Paraíba” em Cajazeiras, fui até Brejo das Freiras, portando gravador, para entrevistar Alencar. Ele concordou em falar mas parecia tenso, agitado e confessou-me ter tido versões de que estava na alça de mira do regime para ser cassado. Mesmo assim, falou, repetindo críticas à ditadura, defendendo a democracia. Ele já havia deixado a estância quando a entrevista foi ao ar na rádio, que, então, pertencia à diocese de Cajazeiras. À noite, a partir das 19h, no noticioso oficial “A Voz do Brasil”, anunciou-se a cassação de Alencar. O AI-5 já havia cassado Mário Covas, que, tempos depois, foi governador de São Paulo e candidato a presidente da República, na eleição de 1989. Alencar era cearense da região de Araripe, filho de pai agricultor e de mãe escrivã da coletoria. Nasceu em 11 de agosto de 1925, registrado como José Alencar Furtado. Participou de lutas acadêmicas em Fortaleza até que, em 1952 chegou ao Paraná, fixando-se na cidade de Paranavaí, onde dedicou-se à advocacia. Incentivado por prefeitos da região, lançou-se candidato a deputado estadual e foi eleito. Em 71 chegou a Brasília como deputado federal.
Em depoimento para o livro de Ana Beatriz Nader sobre o grupo dos autênticos do MDB, de que fez parte o ex-senador paraibano Marcondes Gadelha, Alencar Furtado relatou ter se animado a lutar contra a ditadura porque, como advogado, sentia-se violentado “pelas barbaridades praticadas e pelo arbítrio que campeava”. Alencar sempre falou com paixão da sua militância no grupo “autêntico” do MDB, que começou enfrentando a censura e resistências por parte dos líderes conservadores do próprio MDB, mas ganhou espaço e era respeitado por segmentos da sociedade quando se transformou em porta-voz de denúncias sobre arbitrariedades cometidas pelo regime, inclusive, violações de direitos humanos de adversários políticos. Alencar lembrou que o primeiro seminário promovido pelo grupo foi em 1971 e de lá o grupo clamou até por uma Assembleia Nacional Constituinte.
– Na época, falar em Constituinte era uma afronta, e afrontávamos. Era preciso sacudir a opinião pública – proclamou Alencar Furtado, salientando que o grupo autêntico cumpriu o objetivo a que se propôs de abrir frentes de resistência à ditadura. “Estávamos a serviço do Brasil, não da ditadura”. Marcondes Gadelha, em seu depoimento, reconheceu a expressão de Alencar Furtado como líder do grupo autêntico do MDB e como uma das vozes contra o arbítrio. Faziam parte do grupo autêntico, ainda, Amaury Miller, Eloy Lenzi, Fernando Cunha, Fernando Lyra, Francisco Amaral, Francisco Pinto, Freitas Diniz, Getúlio Dias, Jaison Barreto, Jerônimo Santana, Lysâneas Maciel, Nadyr Rossetti, Paes de Andrade, Santilli Sobrinho e Walter Silva. “O grupo autêntico foi uma das alternativas possíveis de enfrentamento da ditadura; uma outra era a guerrilha”, comentou Marcondes Gadelha, que foi vice-líder do partido, vice-presidente e presidente da Comissão de Economia, no ano de 1978.