Nonato Guedes
Por mais que se evite politizar a questão da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, isto é impossível, porque o presidente Jair Bolsonaro, assumidamente um negacionista, ficou na contramão da História e perdeu a foto emblemática do “dia da vitória, da vacina, da verdade e da vida”, tal como comemorou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ontem, posando para as lentes e câmeras. Diga-se, de passagem, que o próprio Bolsonaro escolheu ficar na contramão, optou por brigar com fatos, por não ser empático com a sociedade brasileira nos momentos mais difíceis da pandemia do novo coronavírus, com a incidência alarmante de casos de contaminação. A guerra política até o chamado dia D foi alimentada mais pelo presidente do que por seus adversários políticos.
Em artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, Eliane Cantanhêde informa que Doria foi quem planejou e se dedicou obstinadamente à Coronavac, sendo o primeiro a vacinar um brasileiro no Brasil. Claro que não desperdiçou seus 15 minutos de glória, com direito a emoção e choro. Bolsonaro, que em vez de se empenhar pela vacina, guerreia contra ela, saiu do ar e deixou o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, na linha de frente contra Doria. E Pazuello não disfarçou a dor de cotovelo. A colunista nota que, enquanto Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos, Chile, Argentina, México, já vacinam seus cidadãos, o Brasil uniu indigência e guerra política. Sem estratégia, sem rumo, o Ministério da Saúde não negociou nas diferentes frentes e pendurou-se numa única vacina, a Oxford/AstraZeneca, que até agora ninguém sabe, ninguém viu no Brasil.
Além de não mexer uma palha para garantir imunização, Bolsonaro atacou a Coronavac como “vacina do Doria” e “vacina da China” e atiçou sua tropa de internet contra o imunizante. Bateu no peito ao dizer que não se vacinaria – e a pergunta que se faz é com que cara ele fica, agora. Pazuello só conseguiu anunciar o início da vacinação nacional na quarta-feira graças à Coronavac. Eliane Cantanhêde acha que a derrota de Bolsonaro arrasta os bolsonaristas de internet. Eles, que comemoraram a quebra do lockdown em Manaus e agora se calam diante do resultado, compararam as vacinas com a talidomida, desmoralizaram a Coronavac, ironizaram a China e, no próprio Dia D, antes do aval da Anvisa, postavam que idosos doentes se vacinaram e morreram na Noruega. Como observa a colunista, os bolsonaristas privilegiaram a guerra ideológica, desdenharam da guerra pela vida, ainda que o Brasil venha a sobreviver à pandemia e a eles.
Ontem, o general Pazuello rendeu-se às evidências, anunciando para a manhã de hoje o início da distribuição de vacinas contra a Covid-19 para todos os Estados. E utilizou o seguinte argumento: “Está dado o primeiro passo para o início da maior campanha de vacinação do mundo contra o coronavírus”. A reunião dos diretores da Anvisa, realizada ontem e que resultou na aprovação de vacinas no território brasileiro, foi acompanhada em clima de Copa do Mundo pela sociedade brasileira, já exausta com tanto blá-blá-blá entre políticos e com muita desinformação a respeito da epidemia e das suas consequências. Com 518 óbitos por Covid-19 em 24 horas, o Brasil chegava a quase 210 mil contaminados. Onze estados registravam alta nos óbitos – e dados como estes reforçam a apreensão reinante entre brasileiros. Além do mais, a situação de extrema calamidade em Manaus, no Amazonas, com falta de oxigênio, parece espelhar com nitidez a radiografia da conjuntura experimentada pelo país no contexto da pandemia.
A condução política do combate à Covid-19 poderia ter sido diferente desde o começo se o presidente Jair Bolsonaro tivesse um mínimo de preparo para governar os destinos da Nação. Tal não aconteceu – deu-se o pior: a reação debochada e negacionista do presidente da República, mesmo quando confrontado com estatísticas que sinalizavam expansão do número de casos e cenas de horror no seio de famílias brasileiras, de Norte a Sul. Ao invés de liderar a sociedade brasileira, de forma suprapartidária e não ideológica, Bolsonaro radicalizou nas posturas permanentes de confronto, numa orquestração beligerante que apenas trouxe insegurança e desmobilização de energias para enfrentamento à pandemia. O mandatário foi regido o tempo todo pela falta de noção sobre um problema extremamente grave. Agora, como na fábula, chega de forma retardatária para bater a foto, quando a onça já foi abatida. A população reza para que pelo menos o presidente não atrapalhe a logística da vacinação. Há um limite para mexer com a tolerância humana – que pelo menos Bolsonaro se conscientize disso.