Nonato Guedes
Embora no horizonte esteja distante a sucessão presidencial, marcada para o segundo semestre do próximo ano, analistas políticos especulam que a guerra da vacina travada entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pode ter sinalizado a prévia de um provável embate entre ambos na disputa pelo Planalto. Doria não esconde a ambição de ocupar a presidência e procura fazer da administração que exerce em seu Estado uma vitrine para o país. Aparentemente estava imobilizado quanto à ocupação de espaços em relação ao enfrentamento à pandemia do coronavírus porque, apesar do negacionismo de Bolsonaro, este tem maior poder de decisão. Mas, no caso da vacina, ele atropelou Bolsonaro, envolveu o Instituto Butantan e os chineses e deu a largada em alto estilo, tão logo a Anvisa tornou pública a aprovação de imunizantes.
Bolsonaro comeu poeira no episódio porque, afeito à miudeza do poder, não percebeu que tinha diante de si a grande oportunidade para se redimir de todos os erros cometidos até então na condução de políticas públicas de combate à calamidade sanitária. Naturalmente que a miopia na análise política correta o impediu de captar movimentos oportunistas e insidiosos do governador João Doria para se credenciar na fotografia de um fato celebrado por todos, indistintamente. O Planalto teve que correr atrás do prejuízo, pressionado pela opinião pública nacional e internacional. Afinal de contas, as estatísticas de propagação da Covid-19 no Brasil são alarmantes e o comportamento do governo brasileiro está longe de ser considerado exemplar. Pelo contrário, desperta críticas constantes e reações virulentas, diante da negação da Ciência, somada à omissão em outros casos considerados graves, como as queimadas na Amazônia que afetaram o meio ambiente.
Como tem sido praxe nas atitudes improvisadas que elabora em cima de fatos consumados, o presidente Bolsonaro demorou a reconhecer a importância da entrada do Brasil no clube das nações que avançaram nas medidas para controle epidemiológico. Quando o fez, passou recibo da própria incompetência e tentou escafeder-se lançando mão do argumento de que a vacina não pertence a governadores de Estados. Doria não insinuou que era dono de imunizante, mas é certo que partiu na frente. O início da vacinação por São Paulo, independente do cronograma do governo federal, foi resultado de árduo trabalho de formiguinha empreendido pelo gestor paulista junto a laboratórios e representantes da indústria de medicamentos no Brasil e no exterior, com acompanhamento criterioso das múltiplas etapas de processos de fabricação de imunizantes contra o coronavírus.
Doria foi mais além em sua estratégia política: antecipou-se ao governo federal na definição de uma estratégia embrionária de distribuição da vacina, de modo a priorizá-la para grupos sociais vulneráveis. Enquanto isso, até ontem à tarde o governo de Bolsonaro patinava no processo de socialização dos imunizantes, tendo que operar às pressas para disponibilizar a logística mínima indispensável. Aos olhos da opinião pública pareceu, claramente, que o mais difícil já havia sido chancelado pelo governo de São Paulo e que seria muita incompetência do governo de Bolsonaro se não lograsse, pelo menos, operacionalizar o esquema para espalhar vacinas pelos diferentes lugares do território nacional. Em última análise, a intervenção de Doria foi providencial para desafogar os demais Estados brasileiros que vinham temendo pelas falhas clamorosas num ambicioso programa de vacinação.
Esses outros governadores evitaram “encher a bola” de Doria por duas razões: não queriam se incompatibilizar com o presidente Jair Bolsonaro neste momento decisivo para a saúde pública brasileira nem desejavam sinalizar acenos de compromisso com uma virtual candidatura do governador de São Paulo à presidência da República. Há pretensões concorrentes no bloco dos próprios governadores, valendo citar que até o maranhense Flávio Dino, do PCdoB, volta e meia tenta capitalizar o papel de principal expoente da oposição a Bolsonaro e aos erros do seu governo, sem que, concretamente, tenha sensibilizado colegas de mandato a emitirem sinais de apoio em termos de postulações. Há pretendentes ocultos na safra atual de governadores – e a própria emergência da situação de calamidade sanitária inibe passos com vistas a uma concertação política.
Com o cacife reforçado, Doria pode ter carimbado definitivamente, no episódio da deflagração da vacinação, o passaporte para a corrida presidencial de 2022. Sobre essa corrida em princípio,, comentou-se reedição de confronto PT X Bolsonaro na disputa do próximo ano, depois eclodiram sugestões de nomes que poderiam representar o centro e a direita no confronto, ressalvada a projeção de embate ideológico nas urnas. Em meio a esse jogo, não faltaram apostas aleatórias em nomes como o do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, que deixou o governo rompido com Bolsonaro, ou até mesmo o do apresentador da TV Globo, Luciano Huck, que, inclusive, promove debates periódicos sobre a conjuntura nacional e tenta se imiscuir na conjuntura, sem ter, ainda, adquirido confiança plena. Claro que João Doria ainda vai depender do sucesso da vacinação no próprio Estado que ele administra, bem como das estatísticas sobre o coronavírus, mais na frente, em São Paulo.
Em todo caso, parece fora de dúvidas que o gestor paulista jogou no palco uma grande cartada que tende a favorecê-lo nas análises que serão feitas de agora em diante tendo como pano de fundo a eleição presidencial de 2022. Em se confirmando o embate dele com o presidente Jair Bolsonaro, a sucessão ao Planalto perderá muito do caráter de confronto ideológico porque se dará entre correntes distintas do segmento da direita ou da centro-direita. No paralelo, a esquerda e centro-esquerda, que tendem a partir pulverizadas, divididas profundamente na eleição, serão desafiadas a assegurar não mais a perspectiva de competitividade na luta pelo poder, mas a possibilidade de sobrevivência num cenário densamente ocupado por figuras de outro extrato ideológico que avultam em meio a uma das mais profundas crises sanitárias que o Brasil já enfrentou. Este é o quadro posto, com inevitáveis repercussões ou desdobramentos nas eleições para governadores de Estados e para representantes no Senado e na Câmara dos Deputados.