Nonato Guedes
A paraibana Luíza Erundina, deputada federal por São Paulo e, nessa condição, candidata à presidência da Câmara, entrou na linha de tiro, em plena disputa, dentro do próprio partido pelo qual concorre, o PSOL – Partido do Socialismo e da Liberdade. Ex-PT, ex-PSB, primeira mulher eleita à prefeitura de São Paulo na década de 90, Erundina atraiu o bombardeio ao criticar a ala do seu partido que defende o apoio ao emedebista Baleia Rossi (SP) a pretexto de que se trata do nome mais viável para derrotar o candidato do bolsonarismo ao cargo, o deputado Arthur Lira (PP-AL). Através das redes sociais, Luíza Erundina acusou o grupo de barganhar cargos e ceder ao fisiologismo. “É lamentável que o PSOL negocie suas convicções e compromissos políticos históricos ao aderir ao fisiologismo e à barganha por cargos na Mesa da Câmara. Essa é uma prática dos partidos de direita com a qual eu não compactuo”, disparou a deputada.
Ela foi duramente criticada pela ex-líder do partido Fernanda Melchionna (RS), favorável ao apoio a Baleia já no primeiro turno, como alegada tática para infligir revés aos bolsonaristas. Melchionna qualificou como “lamentável” a mensagem da colega de partido, salientando que Erundina não tem autoridade para acusar membros da legenda de barganhar cargos por apoio político porque ela deixou o PT para ser ministra do governo Itamar Franco, no início da década dce 90. A ex-líder cobrou respeito da parte da parlamentar de 86 anos. O deputado Marcelo Freixo, do PSOL-RJ, entrou na discussão e condenou a fala de Erundina. Textualmente, afirmou: “Respeito muito a história de Luíza Erundina, apesar de discordar do lançamento da sua candidatura à presidência da Casa. Mas é inaceitável insinuar que a defesa da entrada do PSOL no bloco democrático para derrotar Bolsonaro passa pela negociação de cargos. Isso não é verdade”.
Erundina foi criticada, também, por Sâmia Bomfim, do PSOL-SP, que cravou: “Respeito a Erundina. Mas ela erra em tornar uma divergência tática numa acusação grave ao partido. Já questionei quem está negociando e quais são os cargos. Não obtive resposta. Nem obterei, pois a posição divergente é fruto de análise política, não de fisiologismo”. Em termos concretos, Erundina não tem chances de vir a se eleger ao comando da Casa. A disputa está declaradamente polarizada entre Baleia Rossi e Arthur Lira, sem espaço de viabilidade para uma terceira via. Baleia Rossi não é propriamente anti-Bolsonaro radical, mas está sendo adotado por partidos de esquerda diante do compromisso retórico de defesa de uma Câmara Independente. É a senha que os adversários do presidente almejam para não fechar com Arthur Lira, tido como submisso ao Planalto e candidato chancelado pelo próprio Jair Bolsonaro.
Haveria uma única brecha para Erundina nesse jogo: o de vir a ser adotada como candidata de protesto por forças políticas e sociais com repercussão na Câmara dos Deputados, simbolizando uma guinada extrema na postura tradicional de conciliação de elites e de acomodação de interesses de grupos dominantes. Essa guinada poderia produzir, com Erundina na presidência, o encaminhamento do próprio processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, que até aqui tem sido travado ostensivamente pelo presidente em fim de mandato Rodrigo Maia (DEM-RJ0, que, não obstante, aposta na inevitabilidade do afastamento do mandatário, sob outra gestão. Já se disse, aqui mesmo, neste espaço, que Rodrigo Maia perdeu a chance de entrar na História por ter se acovardado em dar andamento a um dos inúmeros pedidos de impeachment em tramitação na Casa. Hoje, tenta posar de herói, mas a verdade é que se trata de um herói sem causa.
Quanto a Erundina, o respeito pela sua biografia ou pela sua trajetória política não a exime de se tornar alvo de críticas quanto a equívocos de posturas que adotou. A parte positiva do seu currículo pode ser resumida na vitória contra preconceitos por ser nordestina, mulher e petista e, ainda assim, lograr ascender à prefeitura de uma das capitais mais importantes da América Latina. Convém não esquecer que mesmo quando foi prefeita de São Paulo, Luíza Erundina enfrentou sabotagem emanada das fileiras do próprio Partido dos Trabalhadores. A orquestração foi estimulada diretamente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca absorveu a projeção de Erundina e temia que ela se tornasse uma concorrente perigosa, em potencial, à sua própria liderança. A ex-Assistente Social pressentiu a tempo as manobras ardilosas de bastidores para “cancelá-la” e buscou construir um novo enredo para si próprio. Foi quando assinou ficha no PSB, que, como constatou, também não a satisfazia. Acabou migrando para o PSOL – e na eleição municipal do ano passado concorreu a vice-prefeita em São Paulo na chapa encabeçada por Guilherme Boulos. Parecia ter se reconciliado com a coerência, mas hoje é flagrada na contramão da conjuntura e, por causa disso, contestada dentro da legenda pela qual optou a pretexto de se sentir mais à vontade.
Ninguém esquece, é claro, o papel significativo desempenhado por Luíza Erundina na orquestração de integrantes da Câmara Federal para desmoralizar, de público, o então presidente da instituição, Eduardo Cunha (MDB-RJ), que se desviou dee atribuições inerentes ao cargo e participou de conspiratas de bastidores para influenciar na mudança de rumos do cenário político nacional. Cunha, ainda hoje, cumpre pena de prisão, como consequência das suas responsabilidades e envolvimento em operações nada republicanas detectadas pela Operação Lava-Jato. Em outras palavras: ele foi pilhado na máfia da corrupção – e é certo que a deputada Luíza Erundina teve lá sua parcela de contribuição no desgaste do oportunista político fluminense. Atitudes assim não autorizam, porém, que seja conferida à paraibana que é deputada por São Paulo uma espécie de imunidade absoluta.
O papel de Luíza Erundina numa eleição em clube fechado mas com repercussão externa como a da presidência da Câmara Federal não a coloca, necessariamente, em posição de vanguarda. Ela parece ter dado ‘stop” na linha de coerência que perseguia. Em último caso, sua aposta no embate de que participa é equivocada – e infrutífera, a se confirmarem todas as projeções feitas por analistas sobre o desideratum da eleição à Mesa da Câmara dos Deputados. Nenhuma projeção crava Luíza Erundina como protagonista do processo que está para ser desencadeado. Talvez o seu propósito seja mesmo o de marcar posição. Teria sido assim no ano passado, quando topou ser vice de Boulos, e estaria sendo assim agora, na atribulada corrida pelo comando da Câmara dos Deputados.