Linaldo Guedes
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Costumo dizer que quem melhor vem fazendo poesia no Brasil hoje são as mulheres. Uma prova disso pode ser constatada na coletânea “As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira”, organizada por Rubens Jardim, e que sai em versão impressa ainda neste primeiro semestre pela Arribaçã. É que na poesia escrita pelas mulheres há uma diversidade maior de estilo e, principalmente, de temas abordados. Sem medo de arriscar, elas escrevem sobre tudo, onde a linguagem está a serviço do conteúdo, e não o contrário – claro que estou falando da boa poesia. Na poesia feita pelos homens, há um medo exagerado de se expor, como se a literatura não fosse um meio de exposição, naturalmente. Assim, nesta poesia, a dos homens, o conteúdo está a serviço da linguagem, onde, primeiro, é preciso podar, para só depois falar, o que torna o poema, na maioria das vezes, bem construído tecnicamente, mas longe de provocar arrebatamento no leitor.
Uma amostra do que estou falando pode ser encontrada na nova coletânea poética da mineira Adriane Garcia. Intitulada “Eva-proto-poeta”, a obra saiu em 2020 numa edição caprichada da editora Caos&Letras, de Minas Gerais, com capa de Micaelle Brito e projeto gráfico de Cristiano Silva, que também assina a edição, juntamente com Eduardo Sabino. É um livro forte, denunciador, onde a autora, que já se firma como uma das vozes mais lúcidas da poesia no Brasil, busca na mitologia bíblica uma forma de falar sobre como a mulher é encarada ao longo dos tempos na sociedade.
É a própria Adriane Garcia quem explica a proposta do livro. Diz ela:
“(…) Lilith. Primeira mulher, mulher-coruja, deusa, demônio, em mitologias, nos livros oriundos das tradições orais, na Bíblia, no Torá, no Talmud, nos amuletos de Arslan Tash, na demonologia suméria, no poema épico Gilgamesh, na ficção atual há ecos de seu nome”.
Lembra Adriane que no Gênesis, principalmente entre os primeiros capítulos, se Lilith esteve, desapareceu. “Da rebelião de Lilith ao silenciamento de Eva, metade da humanidade resolveu subjugar a outra metade. Essa história não era para ser contada”, afirma.
Adriane Garcia faz sua parte no sentido de resgatar essas mulheres do apagamento. Todo o livro é uma busca desse resgate, não só em relação a Lilith e Eva, mas também de todas que foram subjugadas ao longo de nossa história. Já no início da obra, está a “gênese” desta poesia garciniana. A ironia é o traço que predomina aqui. Afinal, fala-se de um Deus que criou três filhos sem infância. Ironia e transcriação, já que no princípio “Era a boca de Lilith/ abocanhando o verbo”. E o incesto bíblico, que ninguém consegue explicar? Adriane expõe:
Lilith não quer
Papai e (não tem) mamãe
No Paraíso só há
Irmãos”.
É, meus amigos, a Lei Maria da Penha já era para ter surgido no Jardim do Éden. Lá, avisa Adriane, Adão ergue o braço contra Lililith e conspurca o Paraíso. Foi lá que Lilith chamou o nome de Deus em vão, para denunciar Adão, que, chorão, foi pedir ajuda ao papai. Chegaram anjos, mas Deus já não sabia de tudo? E ao se arrepender de ter criado o homem, cria Eva e mente que foi da costela. Antes de cobrir o corpo, Eva cobre a cabeça. Mulheres não podem se expor, não é?
Com o tempo, Eva descobre que o paraíso “É quando Adão/ está dormindo” e que sem passado não pode se refugiar na infância que não teve. Mas se Adão enjoava de ter todo dia a mesma Eva, o contrário também acontecia.
O que Adriane Garcia faz em “Eva-proto-poeta” é recriar o mito bíblico. Com coragem, ousadia, ironia. Na verdade, ela desconstrói o que aprendemos em catecismos feitos pelos homens e coloca o dedo na ferida do patriarcado, do machismo. Isso tudo embalado numa poesia que chega a doer, de tão verdadeira. Um tapa na cara de quem construiu esses mitos e de quem os absorve passivamente, como no belíssimo poema “Êxodo”:
Expulsos do tal Paraíso
(a terra é grande)
Adão e Eva caminham
Treinados para
A desolução
À noite, vez em quando
Um incubo
Um súcubo sinal
Da compaixão de Lilith
(que não quer mais se meter
com Deus)
Caim nasceu a cara de Samael
Abel nasceu a cara de Adão
Eva teve sim
Filhos
Filhas
E depressão pós-parto:
Agora só quer viajar
E voltar a ser nua
Sem que lhe encostem
Lilith ainda faz
(em mil meninas estupradas)
Os seus mil abortos por dia
E todo dia
Religiosamente
Crê
Em Eva
É todo um êxodo
De tentarem tomar
O seu corpo.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.