Nonato Guedes
Eleito presidente da Câmara Federal com o apoio ostensivo do presidente Jair Bolsonaro, que detesta jornalistas independentes, o deputado Arthur Lira (PP-AL), expoente do chamado “Centrão”, tomou como prioridade número um da sua gestão desalojar o Comitê de Imprensa do local bem ao lado do plenário, transferindo-o para um subsolo da Casa, numa atitude típica de quem tem medo da verdade e, portanto, do contato mais próximo com os meios de comunicação. Lira é remanescente de uma geração de políticos acostumados a viver nas sombras para poder praticar, impunemente, deslizes e atos lesivos ao erário – de que são emblemáticos processos em que é citado na Justiça. A sua revoltante decisão provocou, por óbvio, reações de inúmeros profissionais de imprensa. Transcrevo, aqui, assinando embaixo, o comentário de Paulo José Cunha a respeito, no site “Congresso em Foco”:
“A comparação é descabida, sim. Mas e se o governo do Rio de Janeiro decidisse remover a estátua do Cristo Redentor do alto do Corcovado, onde reina desde sua inauguração em 1931, e ela fosse levada para outro morro, digamos, a pedra da Gávea, ali perto? Sim, a comparação é descabida, repito, mas a ideia é mesmo chamar a atenção para um aspecto completamente negligenciado no ato igualmente descabido do novo presidente da Câmara de retirar o Comitê de Imprensa do lugar que hoje ocupa, desde a inauguração do prédio do Congresso, bem ao lado do plenário, a fim de transferi-lo para um subsolo do plenário e assim poder instalar o próprio gabinete no local. Com tal atitude, o deputado Arthur Lira pretende escapar dos jornalistas, esses seres inconvenientes que abordam os parlamentares quando esses atravessam o Salão Verde em direção aos seus gabinetes com perguntas desagradáveis.
Com o tempo, os lugares adquirem e guardam o gosto da história. O Brasil e o mundo se acostumaram a apreciar o Redentor no alto do Corcovado, desde aquele dia em que Guglielmo Marconi, pioneiro do rádio, acionou desde Roma a bateria de holofotes que iluminou a estátua pela primeira vez. A partir daí, com a pátina do tempo, o Cristo Redentor foi ganhando importância nacional e internacional. Passou por cima de credos e intolerâncias até se transformar numa das maravilhas do mundo moderno. O Comitê de Imprensa da Câmara está longe de ser uma maravilha em qualquer tempo. Mas o tempo deixou naquele espaço marcas definitivas, registradas na memória de quantos passaram e passam por ali.
É de ver-se a atitude quase reverencial dos turistas que o visitam, para ver de perto a azáfama dos responsáveis por levar ao Brasil e ao mundo as notícias políticas. Jornalistas de todos os veículos de imprensa que enviaram seus repórteres à nova capital, desde sua inauguração em 1960, que ali conviveram, ali trabalharam, ali ajudaram a construir a história do Brasil moderno, sob os eflúvios da modernidade da capital revolucionária, cujas curvas, produto da audácia e do delírio de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, até hoje assombram o mundo. Por dois anos presidi aquele Comitê, na segunda metade dos anos 1980. Naquele tempo, além de espaço a abrigar jornalistas, o Comitê tinha uma enorme importância política. Ali convivi com grandes e inesquecíveis repórteres, comentaristas e cronistas políticos. Gente do naipe de Flamarion Mossri, Jorge Bastos Moreno, Rubem de Azevedo Lima, Tarcísio Holanda, Clóvis Senna, Dário Macedo, Alfredo Obriziner, Leda Flora, Sônia Carneiro, João Emílio Falcão e tantos, tantos outros.
Vez por outra, até Carlos Castello Branco, o Castelinho, autor da Coluna do Castelo, o mais importante colunista político do país, que raramente ia ao Congresso, tinha saudade e passava por lá, para um café. Em plena ditadura, o Comitê exerceu o papel de protagonista nos embates com os governos militares. Dali acompanhamos, e reagimos no que era possível, às violências à democracia, como as cassações dos mandatos parlamentares. Daquelas vidraças os jornalistas viram, atordoados, os tanques dos militares cercando o Congresso. Ali, fui testemunha do choro incontido de colegas diante dos atos ignominiosos do autoritarismo. E igualmente comemoramos emocionados momentos inesquecíveis como o dia em que corremos ao plenário para ver e ouvir Tancredo Neves fazer um dos mais belos discursos, o de homenagem a Juscelino Kubitscheck, recém-falecido. Ou quando abalamos ao plenário para ver Ulysses Guimarães proclamar a Constituição Cidadã.
Por ali passaram grandes e controvertidas figuras da vida política do Brasil, como luís Carlos Prestes, numa de suas últimas viagens a Brasília. Ali, em plena ditadura, os jornalistas faziam uma vigília diuturna para manter acesa a chama da liberdade. Durante muito tempo, quando ainda não existia a TV Câmara, os chamados repórteres de plenário aguardavam a transcrição das notas taquigráficas em calhamaços de papel levados ao Comitê para redigirem suas matérias. Um enorme escaninho, com várias divisões, na parede de trás da sala, cada uma com o nome de um veículo de imprensa, recebia as laudas datilografadas que eram buscadas pro motoboys e levadas às redações, onde eram transcritas e transmitidas por telex às sedes dos principais veículos de imprensa do Brasil, como o Jornal do Brasil, Tribuna da imprensa, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, Correio Braziliense.
(…) Até hoje aquele espaço está impregnado do ar puro da camaradagem e do calor das amizades que ali se criaram e ali se fortaleceram. Ali conspiramos contra os governos militares. Ali desenvolvemos estratégias para driblar a censura, como o jornal Cidade Livre, bancado pelo Sindicato dos Jornalistas, onde publicávamos as matérias vetadas pelos censores. Aquele Comitê tem história, tem cheiro e gosto de história. Ele não está ali por acaso. Quando Niemeyer decidiu que o Comitê ficaria exatamente ao lado do plenário e não em um porão qualquer, estava dizendo, na linguagem da arquitetura, que a imprensa – os olhos do povo – tinha de ter espaço privilegiado de onde pudesse acompanhar cada passo dos que decidem os destinos do país (…) Retirar o Comitê de Imprensa da Câmara do lugar que hoje ocupa, ao lado do Plenário, é atitude que guarda o ranço do mais abjeto autoritarismo. Os lugares guardam e preservam a história. E um pedaço grande da história do Brasil moderno passou por aquele Comitê. Não é saudosismo lutar pela sua preservação. É apenas um ato de respeito à história do Brasil”.