Nonato Guedes
Que a Operação Lava Jato, a mais famosa “blitzkrieg” de combate à corrupção no país, vem sendo esvaziada por segmentos da própria Justiça já há algum tempo, é fato do conhecimento de setores formadores de opinião na sociedade brasileira. Agora, coube ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal Tribunal, aprofundar o desgaste da Lava Jato, colocá-la na berlinda por métodos considerados excessivos que teriam sido empregados e acenar com a liberação, para julgamento, da ação em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pede que seja anulada sua condenação no caso do tríplex do Guarujá. Gilmar Mendes está a ponto, na verdade, de protagonizar uma reviravolta nos rumos da operação que abalou o Brasil e repercutiu no mundo. Essa reviravolta pode favorecer Lula e abrir a porteira para beneficiar outros réus, embora Mendes garanta que cada caso será analisado individualmente.
No centro da controvérsia está a figura do ex-juiz Sergio Moro, que no auge das prisões foi aclamado nas ruas como herói, chegou a integrar o governo Bolsonaro como ministro da Justiça e da Segurança Pública e tenta viabilizar uma candidatura à Presidência da República em 2022. Moro, de acordo com a releitura de episódios sobre sua atuação, teria se portado não como o magistrado exemplar com que foi caracterizado, mas, sim, como um magistrado parcial, atrelado a movimentos políticos. Esta não é uma exegese feita apenas por Gilmar Mendes. Ela já foi aventada informalmente por outros ministros do Supremo, confrontados com fatos que demonstrariam desvio de conduta na linearidade que a opinião pública cobrava dos órgãos do Judiciário. Numa entrevista à BBC News Brasil, Gilmar detonou a Operação. Disse que a Lava Jato apoiou a eleição de Bolsonaro, tentou interferir no resultado eleitoral de 2018 e agiu para perturbar o país durante a gestão de Michel Temer (MDB).
Na entrevista, Gilmar diz ainda que o ex-juiz Sergio Moro “fez tudo o que não condiz” com o que se espera da relação entre juiz e Ministério Público numa investigação criminal. O julgamento do recurso de Lula teve início em dezembro de 2018 e foi interrompido por um pedido de vistas de Gilmar. Na época, dois ministros votaram a votar contra o pedido do ex-presidente: o relator Edson Fachin e Cármen Lúcia. A expectativa de Gilmar é que o caso seja liberado para votação neste semestre. Na ação, a defesa de Lula questiona a imparcialidade de Moro e menciona como uma prova disso o fato dele ter aceito ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Moro havia sido o primeiro a condenar Lula, em 2017, no processo em que o petista é acusado de ter recebido a propriedade de um tríplex no Guarujá da empreiteira OAS como parte de propina em troca de contratos da empresa com a Petrobras. A condenação foi confirmada, depois, pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região e pelo Superior Tribunal de Justiça.
“A Lava Jato tinha candidato e tinha programa no processo eleitoral”, salientou Gilmar Mendes à BBC News Brasil. “Primeiro a Lava Jato atua na prisão do Lula. Prestes à eleição, a Lava Jato divulga o chamado depoimento ou delação do ex-ministro Antônio Palocci, tentando influenciar o processo eleitoral. Depois, o Moro vai para o governo Bolsonaro, portanto, eles não só apoiaram como depois passaram a integrar o governo Bolsonaro”, exemplificou o ministro. Para ele, condenações que se basearam na colaboração informal entre procuradores da Lava Jato e autoridades estrangeiras poderão ser reavaliadas. “Há indicações de que ocorreram vícios nos acordos de delação premiada e induções de declarações dos réus na Lava Jato”, suspeita Gilmar Mendes. Um ponto de partida do questionamento do ministro é quanto a prisões alongadas feitas no âmbito da Lava Jato. E ele admite falhas cometidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal na condução dos processos da Lava Jato.
Como ministro, Gilmar Mendes tomou decisões polêmicas dentro da Corte sobre os rumos que a Operação Lava Jato vinha tomando. O relato é dele: “Fiquei vencido muitas vezes na turma em relação à matéria, por exemplo, das prisões alongadas. Mas foram as decisões que puderam ser tomadas naquele momento”. Ao mesmo tempo, alerta que há muita discussão sobre uma atividade de promotor do juiz Sergio moro. E a atividade de cooperação entre ele e a força-tarefa, a condução proativa que ele fazia do processo, os limites que ele impunha à defesa. “A defesa está tentando caracterizar tudo isso como elementos de suspeição, a inexistência de um juiz imparcial – e é isso que vamos examinar”. Cita também como fato novo o vazamento da troca de mensagens entre procuradores e o juiz Sergio Moro, insinuando que “se vê claramente uma cooperação muito grande entre o juiz Sergio Moro e o promotor”.
Gilmar Mendes nega que esteja querendo desconhecer méritos da Operação Lava Jato no que concerne ao estrito objetivo de combate à corrupção de agentes políticos no país. “Sem dúvida nenhuma – sustenta – a Lava Jato é uma iniciativa importante num contexto de grave corrupção política – isso é mérito dela e de outras operações de combate à corrupção. Mas a Lava Jato pretendeu se tornar algo mais do que isso. Pretendeu se tornar um movimento político, senão até um partido político. Ela pretendeu fazer reformas institucionais”. O que ele quer dizer, em resumo, é que, em termos de legado, não só a Lava Jato mas outras operações e iniciativas de controle da corrupção contribuíram para melhorar – pelo menos – o financiamento do sistema político. Com suas declarações, o ministro pode estar dando a senha para o enterro definitivo da Lava Jato.
O aparente fim da Lava Jato não significa, necessariamente, a reabilitação política plena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, empenhado numa cruzada pela absolvição em inúmeros processos a que responde. Há gravidade em certos processos que pode complicar ainda uma elegibilidade de Lula, tanto assim que o PT já trabalha com uma chapa alternativa para 2022 – com Fernando Haddad e Luíza Trajano. Mas a orquestração que está em curso e que se baseia, em alguns pontos, em elementos irretorquíveis, pode prejudicar os passos do próprio presidente Bolsonaro rumo à reeleição e detonar, de uma vez por todas, a pretensa candidatura do ex-ministro Sergio Moro à Presidência da República.