Nonato Guedes
Uma leitura desapaixonada da decisão do Supremo Tribunal Federal determinando a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) face aos seus ataques à instituição e à democracia realça a posição legalista do STF na interpretação dos princípios que regem o Estado de Direito. A Corte estabeleceu balizas de freios e contrapesos quanto à liberdade de expressão e firmou jurisprudência sobre os limites que deve ter a imunidade parlamentar. Em outras palavras: o deputado, que integrava a facção radical bolsonarista, foi punido por ter desrespeitado leis e a Constituição e por tentar se colocar acima dos mortais comuns na obediência a ditames que alcançam todos os cidadãos, ressalvadas prerrogativas em casos especialíssimo, que não agridem o bom senso.
O deputado federal Daniel Silveira, pelo que se sabe, ostenta mais um prontuário do que propriamente um currículo na trajetória política. É reincidente no cometimento de atos contra a ordem democrática, personificando a criatura que se vale da democracia para destruí-la, dando vazão a instintos primitivos derivados da sua formação autoritária. O parlamentar não tem maior expressividade política-eleitoral, destacando-se mesmo pelas arbitrariedades que pratica e pelos excessos que não condizem com a democracia plena. Confunde liberdade de expressão com libertinagem retórica e torna-se elemento de periculosidade à medida que se vale de redes sociais para incitar seguidores e desinformados a depredar o edifício institucional brasileiro, que tem sido construído a duras penas desde o fim da ditadura militar de 1964 e a entrada em vigor da Constituição Cidadã de que falava o deputado Ulysses Guimarães.
A cruzada perseguida pelo deputado bolsonarista buscou guardar simetria com a linha de pensamento que se identifica no presidente da República, um vocacionado para o autoritarismo, que tem sido contido com dificuldade em meio a recaídas de surtos de delírio na apologia a instrumentos de exceção enxertados na Carta Maior do País em período atípico, de anormalidade reconhecida nos foros internacionais do Direito. A idolatria do presidente Jair Bolsonaro ao malsinado Ato Institucional Número Cinco, que “fechou” tudo no Brasil da ditadura, é fenômeno que beira o patológico, já que o referido Ato redundou no fechamento do Judiciário, do Congresso Nacional, nas cassações de mandatos, na censura à imprensa e aos meios culturais e, de certa forma, sancionou a violência refletida em prisões ilegais, em torturas de presos políticos, em mortes e desaparecimentos de ativistas que ousassem contestar a excrescência que se instaurou no país com a deposição do governo de João Goulart.
O AI-5 tem sido cognominado por historiadores como o golpe dentro do golpe porque foi forjado dentro da perspectiva de endurecer os controles políticos e sociais no Brasil. Foi o grande subproduto da longa noite das trevas que infelicitou o País durante 21 anos, até que houvesse o reencontro do Estado com a sociedade. Os que viveram de perto as consequências e os horrores da cruzada ideológica autoritária desencadeada em diversos “fronts”, da magistratura às universidades, da Câmara Federal aos teatros, puderam constatar o doloroso legado infligido às instituições representativas e à sociedade brasileira como um todo, impotente diante das baionetas e de segmentos da linha dura das Forças Armadas, adeptos da tese do aniquilamento, inclusive físico, de focos de oposição à contrafação de regime que se instalou entre a noite de 31 de março e a madrugada de primeiro de abril.
Nunca é demais avivar a memória, mencionando posturas de sabujos da ditadura militar que aplaudiram atos de força porque clamaram por eles, porque precisavam deles para acobertar privilégios, para dispor de imunidade absoluta, assegurada graças à censura à imprensa instituída por alegados “éditos revolucionários” que, na verdade, eram instrumentos de exceção. A mais emblemática submissão aos horrores do autoritarismo partiu do ministro Jarbas Passarinho na reunião do Conselho de Segurança Nacional destinada a tratar da edição do AI-5. “Às favas todos os escrúpulos de consciência”, obtemperou Passarinho, conforme anais insuspeitos da trágica reunião que decidiu pela supressão da democracia. As raras vozes que ousaram levantar-se com ponderações sobre o risco de excessos como o AI-5, como a do vice-presidente da República, Pedro Aleixo, foram abafadas, solenemente ignoradas porque destoavam do que deveria ser o coro unânime dos algozes de plantão. Aleixo, que acabou destituído de prerrogativas, por mínimas que fossem, alertou para o receio do enfeixamento de poderes nas mãos do “guarda da esquina”, devidamente respaldado pelo alcance do AI-5.
A imunidade parlamentar tem suas limitações, sim – e esta foi outra mensagem simbólica muito forte, expressa na decisão do Supremo Tribunal Federal de determinar a prisão do deputado Daniel Silveira. Em última análise, é preciso notar que a Câmara dos Deputados abandonou o tradicional corporativismo e aprovou a continuidade da prisão de Silveira, por maioria, atestando a legitimidade da ordem expedida pelo STF. Independente do desfecho do episódio, as bases fundamentais da vigência da democracia terão sido preservadas, com o repúdio a surtos de autoritarismo, a golpes e quarteladas. Os que querem “repetir a História” não passarão, se a tanto insistirem, porque, em paralelo à ação enérgica do Supremo, forma-se na sociedade consciência majoritária pela defesa da democracia a qualquer custo.
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