Linaldo Guedes
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A pandemia e o isolamento social em função da Covid tem gerado muitos frutos literários nos últimos meses. Alguns melancólicos, outros bem doloridos, outros, ainda, com um olhar reflexivo e até irônico sobre nós mesmos. É o caso, por exemplo, de Letícia Palmeira em sua nova obra, intitulada “Voz mulher”, publicada no ano passado pela Editora Penalux, de São Paulo. “Somos tão cheios de sabedorias, de magias e cânticos, mas, no entanto, não nos preparamos para o assombro e o medo de um tempo contagioso”, constata Letícia na apresentação da obra. E Liane Schneider fala que o livro é uma forma de introduzir conversas de alguém consigo mesma, num discurso sobre si. “Auto ficção ou ficção sobre alguém que se diz em primeira pessoa”, completa.
Prefiro dizer que são contos breves. E contos encadeados, como numa novela, no estilo leve e irônico que Letícia Palmeira sempre consegue imprimir à sua prosa. Textos que têm como cenário consultórios, clínicas e laboratórios médicos, inicialmente para exames de rotina, mas o ponto de partida para a autora refletir sobre o “novo normal” que não consegue normalizar nada dentro de uma pandemia que assusta o mundo. “Siga a Linha Vermelha, Senhora”, alerta a autora na primeira frase do primeiro texto. É a senha para adentrarmos no mundo leticiano.
A partir daí mergulhamos em 90 páginas de um lirismo seco, irônico e dolorido na maioria das vezes. Sim, porque o eu-lírico de Letícia Palmeira é também o nosso, confinados que ainda estamos em nossos medos e loucuras abortadas em nome de uma falsa normalidade que angustia todo mundo. É esse eu-lírico que nos leva a quando a autora-personagem recorda de sua primeira gestação. “Eu não sabia o que fazer ou sentir. Se felicidade ou desespero. Sim, mas eu estava feliz. Porém, eu mal conhecia meu corpo. Como poderia saber abrigar outro?”, questiona. Esse medo de como lidar com o primeiro filho, a primeira gravidez, acompanhamos em vários momentos do livro. “Perder a virgindade é como perder algo que nunca se viu, que nunca existiu”, ironiza mais adiante.
Em outro capítulo, a autora fala de outros medos. Daqueles que vêm com o abuso sexual:
“O que ninguém sabia e nem eu até o dia daquela consulta com a psicanalista, é que o velhinho amável que morava num sobrado da Travessa B. e que gostava de pentear meus cabelos, molestava meninas no primeiro andar de sua casa. Meninas como eu, quietas, permissivas e tímidas. Eu não sei quantas vezes aconteceu, mas a dor, mesmo cicatrizada, me inferniza de vez em quando”. (pg. 34)
Medo da Covid, claro, até porque a televisão não para de passar as más novas. Covid que traz o lockdown, o isolamento. Que traz o realismo cheio de ilusões que nem as cartas do tarô conseguem desvendar. O medo do retorno de Jesus, do fim do mundo. O medo de o vírus chegar via louça suja ou armários empoeirados. O medo das Lives que proliferaram nas redes sociais. O medo dos médicos. Da ansiedade. Dos amores. Ah, melhor preencher a ficha do consultório e entregar à recepcionista.
“Não há mais revistas nas salas de espera de clínica alguma”, constata a narradora. O que dá margem para observar aglomerações em mais uma clínica ou se lembrar do filme onde as pessoas se relacionavam através de um capacete que emitia ondas de prazer. “Mas há tempos tem sido assim. Preservativos, contraceptivos, luvas, máscara e álcool 70 nas mãos”, relata, enquanto lamenta os exames medievais, apesar dos avanços da medicina. Ao fim e ao cabo, tudo é motivo para uma reflexão irônica: “Percebo que algumas mulheres estão maquiadas. Uma máscara só não basta”, provoca.
Mas há algum sinal de esperança no ar? A narradora fala de aviões que aos poucos retornam aos céus. Aviões que fizeram-na ambicionar o mundo que tanto evitou “quando ainda nos era possível respirar sem o receio de contrair a febre, a tosse, o fim”. Sim, “a dor insiste”, e se amplia com as discussões políticas em grupos de whatsapp. Mas é preciso encontrar a luz amarela, não só nos exames de rotina. Como Letícia mesmo diz, na apresentação da obra, “Voz mulher” nasce para dizer a você, leitor, que tenha calma, não se desespere, olhe pela janela e perceba que as árvores permanecem”. Precisamos desse olhar, para suportar a pandemia.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.