Nonato Guedes
O neurocientista Miguel Nicolelis não é mais o coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste, formado por governadores da região. Ele ficou decepcionado e insatisfeito com governos estaduais que não teriam acatado suas recomendações sobre a covid-19. O Consórcio foi criado em março de 2020 para viabilizar parcerias entre nove estados nordestinos no combate ao coronavírus, diante da dificuldade de acesso, na época, ao plano nacional de imunização do governo do presidente Jair Bolsonaro. Neurocientista, Nicolelis é respeitado em todo o mundo pelos conhecimentos técnicos-científicos. O governador da Paraíba, João Azevêdo (Cidadania) comentou, rapidamente, a sua saída, ontem, lamentando-a mas deixando claro que há outros profissionais qualificados capazes de conduzir os rumos do Consórcio no combate à pandemia.
No começo de janeiro, Nicolelis foi às redes sociais para pedir a decretação de um lockdown nacional no Brasil como estratégia com vistas a impedir o avanço da pandemia. Chegou a afirmar, de maneira enfática: “Acabou. A equação brasileira é a seguinte: ou o país entra num lockdown nacional imediatamente ou não daremos conta de enterrar os nossos mortos em 2021”. Defendeu que o Brasil precisava criar urgentemente uma Comissão de Salvação Nacional, alegando que o país ultrapassara todos os limites aceitáveis de estupidez. “Estamos correndo o risco de entrar em colapso sanitário, social e econômico em 2021. O Brasil está na UTI e o diagnóstico é falência terminal de múltiplos órgãos”. Antes da postagem, o cientista havia mencionado o lockdown decretado pelo governo da Inglaterra que, diferente do Brasil, tem bem menos casos e mortes de Covid-19 e, na época da declaração, já estava vacinando a população.
O cientista escreveu, então: “Inglaterra decretando o terceiro lockdown nacional para conter explosão de casos. Até Boris Johnson se rendeu aos fatos. Por aqui, a palavra lockdown virou palavrão para gestores. Tanto melhor para o coronavírus, que se beneficia da inoperância, omissão e ignorância rampantes”. Quando do protesto de Nicolelis, duas mutações do coronavírus haviam sido descobertas no Reino Unido, o que sugeriu a hipótese de registro de novos picos diários de casos e mortes. O Parlamento Britânico foi convocado para debater as medidas de lockdown e, antes de Johnson, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, já havia imposto o lockdown mais rígido para seu país desde o primeiro semestre de 2020. Um dos últimos prognósticos de Nicolelis foi o de que é possível que o Brasil não possa realizar o carnaval de 2022 em razão da pandemia do novo coronavírus.
– Se nada for feito, se continuarmos com esses índices crescendo, com essas curvas crescendo assustadoramente, se as pessoas acharam que não ter carnaval em 2021 foi grave, a possibilidade da gente não ter carnaval em 2022 começa a ser real – enfatizou o cientista numa entrevista à TV Bahia. No mesmo diapasão, acrescentou: “Essa situação parece que pode perdurar ao longo de todo o ano de 2021. É importante que a gente deixe isso claro: se nada for feito, não haverá solução com medidas paliativas que são conhecidas como sendo ineficazes em todo o mundo, como o toque de recolher”. Os sites e portais noticiosos do Sul do País destacaram a ênfase com que Nicolelis insistiu na defesa de um isolamento social rígido em todo o território nacional. No entanto, ele entendeu que não estava sendo correspondido nem levado em conta nas suas avaliações, pelo menos no âmbito do Consórcio Nordeste. A jornalista Mônica Bergamo, da “Folha de S. Paulo”, revelou que a comunicação da decisão teria sido feita há duas semanas.
A verdade é que, por injunções políticas ou por conveniências peculiares a cada Estado, não tem havido um plano unificado de ação entre eles para as diferentes etapas do enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Medidas de flexibilização de atividades ou de restrições (estas demandam cumprimento mais rigoroso de isolamento social) têm sido tomadas com base no impacto das pressões de segmentos da sociedade, que, como se sabe, nem sempre são consensuais. Os interesses corporativistas, mais do que nunca, têm predominado de forma latente neste período de enfrentamento à pandemia. A afinidade mínima que se verifica é na mobilização por mais recursos do governo federal ou por mais vacinas para Estados e municípios. Mas faltou articulação para unidade no plano geral do combate à pandemia, com isto dispersando-se iniciativas que já poderiam estar avançadas na apresentação de resultados.
A saída de Miguel Nicolelis é uma baixa de forte impacto na formulação de diretrizes do Consórcio Nordeste para o combate à Covid-19. Restam o reconhecimento da valiosa colaboração que ele ofereceu no período em que formou ao lado de outros cientistas e especialistas em Saúde Pública e a certeza de que, em caso de emergência, nas situações de agravamento da calamidade, ele não fugirá do dever patriótico de continuar contribuindo para que o Brasil supere o mais rápido possível a fase mais aguda que está vivenciando no histórico da pandemia de coronavírus.