Linaldo Guedes
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Ao ler as primeiras páginas de “Estão matando os meninos”, mais recente livro do escritor Raimundo Carrero, lançado em 2020 pela Iluminuras, acabei lembrando do romance “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, publicado lá no início da chamada segunda fase do Modernismo, a fase que deu caráter mais regionalista ao movimento. Não que esteja comparando as duas obras, claro. Até porque uma é romance e outra é uma coletânea de contos. Mas ambos os livros partem do mesmo tema para a construção ficional: a violência contra os jovens, contra os meninos. Principalmente os pobres.
Em “Capitães de Areia”, recordemos, Jorge Amado narra a vida de um grupo de menores abandonados, que crescem nas ruas da cidade de Salvador, na Bahia. Esses meninos vivem em um trapiche, roubando para sobreviver, e sempre são perseguidos pelo destacamento policial. Em “Estão matando os meninos”, Raimundo Carrero conta várias histórias, tendo como protagonistas os meninos e meninas do Brasil. Histórias trágicas, tristes, sobre o assassinato desses jovens em cidades e localilidades onde são realizadas operações policiais em combate com traficantes e bandidos, atingindo, como bem diz Carrero, crianças que vão ou voltam das escolas.
Há, no entanto, uma diferença forte entre os dois livros, apesar dos enredos parecidos. Na obra de Jorge Amado, o tom é de esperança, diria até de idealismo. Os tempos eram outros. Havia a expectativa de um novo Brasil, do ideal comunista representado no personagem Pedro Bala. Além disso, os “capitães de areia” eram livres. Apanhavam da polícia, mas viviam nas ruas, sem amarras e nem obrigações sociais.
Já na obra de Raimundo Carrero, o tom é de dor mesmo. De desalento. De desesperança. Um livro que fala de um país perdido, sem expectativas de mudanças à curto prazo. Um país que perdeu a capacidade de sonhar. De idealizar. De esperançar.
“Estão matando os meninos” reúne várias histórias, que podem muito bem serem encontradas em qualquer página policial de algum jornal. Só que aqui falamos da ficção de Raimundo Carrero, um dos melhores escritores em atividade no Brasil, ganhador de vários prêmios e com obras traduzidas em várias partes do mundo. Neste livro, o autor dá continuidade às “Cartas ao Mundo”, iniciadas no livro “As sombrias ruínas da alma”. Neste, o autor começa a partir da quarta carta. E assim vai narrando histórias que infelizmente não ficam apenas no terreno da ficção.
Na “Quarta carta ao mundo”, Ismael chora a morte do filho “rasgado de bala de rifle”, “sem querer”, por uma polícia que procurava um traficante e matou Jorge, que era tão inocente e brincava de carrinho de madeira na areia, “o carro que ele mesmo fizera com seus dedos mágicos de artesão”. Nem na escola o menino estava à salvo da morte: “Escola é uma espécie de passe livre para o crime desses bandidos milicianos. Sem bom dia nem boa tarde e matam”. Sem sorriso, porque menino pobre não pode sorrir. E o pai? Coitado! É chamado apenas na hora de reconhecer o filho no necrotério, e ainda tratando o policial com a reverência do “Sim senhor”!
E Emanuelle, pernas tão finas e leves ainda no Lago dos Cisnes, morta pelos “homens”? A pequena bailarina, levada num caixãozinho para um carro funerário. Ou João dos Aviões, sendo pisoteado pela bota de cano dobrado do policial. Estamos falando de crianças pobres. “E menino pobre não brinca, pede esmola”, diz Jéssica em “Para o alto e para o gol, sempre”. Afinal, “fome é vício de pobre, Pobre passa tanta fome que acaba se viciando”, assertiva feita no conto “Tortura em dia de fome”, um dos melhores do livro. O garoto que termina acompanhando o cego cantor na feira, para ganhar uns trocados sem pedir esmola, mas isso de pouco adianta ante a realidade de sua triste vida. Ou a estranha história de Amélia que viu o pai ser assassinado na sua frente, com a mãe indiferente. Quase todas as histórias narradas em “Estão matando os meninos” se passam na fictícia Arcasanta, cidade da grande Recife. São personagens bem construídos, como o palhaço Mula Torta ou o líder estudantil Salatiel.
Na “Sexta carta ao mundo”, último capítulo do livro, Carrero introduz outros temas no livro, além do genocídio das crianças. Como a Covid, no conto “O mausoléu dos nossos amores”, aliás, um dos melhores textos de ficção que li sobre o tema da pandemia. Carrero constrói uma narrativa que vai numa crescente, desde a personagem em sala de aula, depois descobrindo a dança, até ser surpreendida pelo surgimento da Covid e por um fim trágico que não vou dar spoiler. Mas confira esse trecho:
“(…) No banho sentiu a leveza do balé, o acarinhado das águas, a solidão das paredes frias. E o medo crescendo no corpo, se avolumando no coração atormentado, o escuro na mente e a convicção de que, naquele dia em que conheceu o voo da alma, seria obrigada a permancer trancada na casa, sem abraços, apertos de mão, afetos, carinhos; aturdida e inviolável, um pássaro sem árvores e sem montanhas, a vida lhe negava o encanto dos sonhos para sempre e para sempre”.
Carrero fala, ainda, da luta contra o racismo e de outros temas, até mesmo do futebol. Nas orelhas, ele diz que está cansado, mas ainda acredita que sua obra de alguma maneira contribuirá para o fim desta guerra de bandidos, que só mata crianças e dizima uma geração de brasileiros. Queria ter essa esperança, Carrero. De qualquer forma, temos a sua literatura, que, parodiando Rosa, é um descanso na loucura em que se transformou o Brasil.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.