Nonato Guedes
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está em estado de graças. Mercê do voto de um ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, anulando condenações a ele impostas no âmbito da Lava Jato na República de Curitiba, que tinha Sérgio Moro como expoente, Lula reafirmou sua condição de “animal político”, empolgou-se e assumiu, sem contestação, o contraponto ao presidente Jair Bolsonaro e ao governo que ele pilota, alvo de constante rejeição em parcelas da opinião pública. Talvez seja cedo para garantir que Lula pode ser candidato ao Planalto em 2022 – do ponto de vista legal, só uma decisão colegiada lhe ofertaria esse passaporte. Mas, como já voltou ao jogo, e em alto estilo, o ex-sindicalista é confiante em que vai se formando um ambiente psicológico favorável às suas pretensões de reabilitação no poder.
Se essa etapa for vencida, ou seja, o direito de candidatura lhe for plenamente assegurado, Lula da Silva é um forte candidato, com condições de bater nas urnas o próprio Bolsonaro, que até então não vinha encontrando opositores de fôlego e, talvez por isso, tenha se permitido cometer erros que comprometeram sua imagem até mesmo junto a bolsões bolsonaristas ou, seguramente, junto a núcleos anti-petistas, sempre receptivos a uma polarização. Não é que Lula seja imbatível, por antecipação. No papel de candidato ele estará exposto a oscilações de humor por parte de segmentos do eleitorado, que tanto podem santificá-lo como também podem demonizá-lo. Em termos concretos, Lula, que foi recordista de disputas à Presidência da República e a conquistou por duas vezes, encarna o anti-Bolsonaro melhor do que qualquer outro postulante. Tem o cacife que o governador de São Paulo, João Doria, do PSDB, não tem. Como reconheceu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, “pode dar Lula novamente, sim”.
Abstraindo as injunções de caráter jurídico que envolvem a trajetória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que fica evidente, para setores da sociedade, é que a decretação da soltura dele e, ultimamente, a anulação, por um ministro da Suprema Corte, de processos que embasaram toda a orquestração montada para indiciá-lo como réu, comprovam que, se o petista não era totalmente inocente, também não era absolutamente culpado. Diga-se, de passagem, que para a construção dessa narrativa colaborou a própria postura assumida por Da Silva na primeira fala após a manifestação do ministro Fachin. Por cálculo ou estratégia política, o ex-presidente não passou recibo de ressentimentos contra quem quer que seja. Adotou perfil de magnanimidade, com isto, teoricamente, demonstrando amadurecimento político diante de acontecimentos desagradáveis, e desgastantes, para sua própria biografia.
A habilidade de Lula em sobreviver a tempestades já havia sido demonstrada em episódios controversos quando ele era presidente da República, a exemplo das denúncias sobre o “mensalão”. A primeira atitude calculada de Lula, quando confrontado pela imprensa sobre o pagamento de mesada que comprava votos de políticos, foi de estupefação, até mesmo de questionamento sobre o que estava sendo publicizado. Com a evolução do samba-enredo e a comprovação confessa de envolvimentos de próceres do PT e de outros partidos da base com o esquema de corrupção, Lula quedou-se aos fatos e ensaiou um pedido de desculpas à população, colocando-se no papel de “traído” pelo próprio partido que fundara no ABC paulista na década de 1980. O PT e alguns de seus integrantes foram para a rua da amargura, mas Lula logrou manter incólume a sua imagem. E até mesmo ganhar sobrevida para concluir mandatos e eleger a sucessora, Dilma Rousseff.
Chamado à colação, mais uma vez, no episódio do “petrolão”, que custou caro aos cofres públicos e danificou a credibilidade de uma empresa com status de patrimônio nacional intocável como a Petrobras, o ex-presidente Lula da Silva situou-se, outra vez, como vítima, com a vantagem de que, desta feita, não havia como inquiná-lo, à primeira vista, por não estar consignada sua impressão digital em contratos que foram lesivos à soberania brasileira. Lula acabou sendo “pilhado” em delações premiadas, tanto de cabeças coroadas do petismo que, hoje, são estigmatizadas na legenda, como por empresários e personalidades do mundo financeiro com tentáculos avassaladores pelo território nacional e por países ricos em investimentos. Tirando proveito, sorrateiramente, da confusão criada junto à opinião pública, Da Silva escafedeu-se da execração unânime, embora não escapasse da prisão, onde esteve recolhido por 580 dias.
Para o processo de impeachment de Dilma Rousseff, no segundo mandato à frente da Presidência da República, Luiz Inácio elaborou, em ritmo fulminante, a narrativa do “golpe”, ignorando as acusações formuladas pelo Tribunal de Contas da União a respeito de “pedaladas fiscais” cometidas no período e que configuraram crimes de responsabilidade, passíveis de afastamento do exercício do cargo. A militância petista e os aliados “de esquerda” foram doutrinados a sustentar, com veemência, que o impeachment de Dilma Rousseff constituiu “quartelada parlamentar”, com raízes na Câmara Federal presidida por Eduardo Cunha, depois convertido, também, em presidiário. Ainda hoje, a narrativa do impeachment se divide entre os defensores da “conspiração política” e os advogados da tese de improbidade administrativa atribuída à ex-presidente, cujo despreparo, aliás, era alardeado até mesmo entre petistas de carteirinha.
Lula está livre e de volta à cena. Pessoalmente, é sequioso por absolvição plena, por decretação de sua inocência absoluta e vale-se da maré favorável que está em curso para levar adiante o projeto de poder: a retomada do Planalto. Com ele no papel de expoente e dentro de um “script” em que possa derrotar Jair Bolsonaro na sua tentativa de ser reconduzido à Presidência da República. Lula, é claro, esconde facetas da sua personalidade em meio ao vai-e-vém dos acontecimentos das últimas décadas na história do Brasil. Mas qualquer cidadão letrado pode concluir, sem precisar adivinhar, que Luiz Inácio encarna a figura do “vingador”. Se vai concluir ou não essa obra, é outra história. Mas que ele encarna o figurino, isto é fora de qualquer dúvida ou de mínima contestação. Na oposição a Bolsonaro, ele é o nome mais credenciado, ressalte-se. E é difícil imaginar que essa polarização agrade mesmo a Bolsonaro.