Linaldo Guedes
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Estrear em livro nunca é fácil. Estrear em livro de poesia é mais difícil ainda. Sempre fica a dúvida de que poemas escolher, que critérios usar, por que esse e não aquele, enfim. Todas as dúvidas que recaem sobre a cabeça de um autor ou autora estreante. Que poeta não já passou por esses dilemas? Clariça Ribeiro estreia em livro de poesias com “Ecos do Céu da Boca”, obra que foi Menção Honrosa no I Concurso Literário da Arribaçã de 2020. O livro, como muitos que vêm saindo nos últimos meses, foi pensado durante o isolamento social por conta da Covid, mas não é uma obra sobre a pandemia.
Clariça nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, e reside atualmente em Sousa, sertão da Paraíba, onde leciona no campus da Universidade Federal de Campina Grande daquela cidade. Ela me explicou que ao reproduzir em sua estrutura interna os elementos constitutivos do eco (numa referência ao som que ao ser emitido, vai até o obstáculo, sofre reflexão e retorna à fonte após um determinado intervalo de tempo), o livro traz versos que ressoam amores, desejos, lutas e travessias, conformando uma poética que se propõe a ser ao mesmo tempo sensual, social e espiritual.
Apresenta, assim, poemas que perpassam as temáticas da autodescoberta, da criação poética, das múltiplas violações que atingem especialmente a vida de mulheres e meninas, do amor em suas diversas expressões e possibilidades, do tempo com suas pausas, despedidas e reencontros e os processos de ruptura das mulheres com as determinações patriarcais que aprisionam e mutilam suas existências. Tudo isso mobilizado a partir de um eu lírico bastante lúcido e sensível tanto ao sagrado quanto ao profano.
De fato, todo esse caleidoscópio ecoa nas 102 páginas do livro, editado pela Arribaçã com capa de Leonardo Guedes. Dividido em cinco partes, “Ecos do céu da Boca” começa abordando o fazer poético. E aqui Clariça já dá seu recado de forma explícita: “não quero ser a poeta/ dos versos gerados/ para o agrado alheio”. Mas querer não é poder, poeta! E sua poesia agrada aos leitores, principalmente pelos versos diretos, sem abrir mão da imagem e do lirismo. Sim, o “eu-lírico” é sua proteção, mas não oculta o eco de sua poética.
A parte II do livro fala do “Deparar-se com o obstáculo”. Neste, Clariça expõe as pedras no caminho, a paralisia pela solidão. Lamenta o corpo da menina que acomoda estupros. Constata que “casa quando não é ninho é exaurimento/ amor de asas cortadas”. Pede para que seja devolvida a sua sanidade. E encerra o capítulo com o forte “Buceta Antifa”, uma ode anti-fascista para esses tempos de recrudescimento dos valores humanos em função de um governo que retornou dez milhões de casinhas nos avanços conseguidos pela sociedade nos últimos anos. É um poema que parte do corpo para expor a falta de prazer e a negação em viver uma realidade fascista.
O capítulo III do livro expõe a “reflexão experimentada”. E como o título sugere, fala disso mesmo: de reflexões temporais e atemporais da poeta, sobretudo reflexões eróticas. Dos tropeços em seus delírios, Da ocupação, não da invasão, de seu corpo. Da calcinha encharcada por um sonho nada monótono. Do casamento, onde não existem metades, mas criaturas inteiras. Sobre escolhas. Sobre o amor às bocas, de todas as espécies. O erotismo de Clariça não é sutil, mas está longe de ser pornográfico. Diria que é um erotismo imagético. Ela parte de imagens reais, algumas até inusitadas, para falar de seu corpo, de seus desejos, de seus orgasmos verbais e orais.
A parte IV do livro aborda o “lapso de tempo necessário”. Em “Quarentena” fala dos tempos atuais, e faz uma bonita homenagem, implícita, a Maria Valéria Rezende, ao abrir o poema citando “quarenta dias”, um dos mais belos romances da escritora santista/paraibana. Há, nesse capítulo, alguns poemas que possivelmente foram feitos em outros tempos, como “Amor-recordação” e “Reencontro com si”. São poemas que fogem um pouco, em termos de linguagem, do nível em comparação com os demais.
Na parte V, Clariça explica o “Regresso à Matriz”. Aqui, a poeta fala de suas origens, do umbigo apartado de quem lhe causou, do bonito e difícil ofício das doulas, da paranóica narrativa em torno do enigma de Capitu, do verdadeiro simbolismo do 8 de março. Da masturbação feminina, dos orgasmos, de suas crenças. A poesia de Clariça é um manifesto ao novo. Uma poesia que não é metalinguagem teórica sobre estátuas, mas às vezes é metalinguagem prática de peles e corpos. Uma poesia que pulsa firme e pede passagem com seus versos originais. Como no belíssimo “Sagradas Avós”:
Mais do que a neta
Das bruxas que não conseguiram queimar
Eu sou a neta das santas
Que confinadas entre cozinhas e dispensas
Com teus lamentos silenciosos
E dores impenetráveis
Tiveram que lutar sozinhas
Contra o que aprenderam ser destino
E tantas vezes fugiram pela janela
Apenas para sentir um pouco
O gosto do desatino.
Eu sou a neta das putas
De paixões desaforadas
Da libido escandalosa
Da paz perturbada por moralistas e puritanos
As que souberam ser carne viva e vulcânica
E fizeram de cada pedaço
Do corpo subjugado
Uma semente de rebeldia.
Eu sou a neta das loucas
De obediência aos padrões extraviada
Libertas de compromisso com o que era alheio
De profunda complacência com quem
Não se permite esvaecer
Com os duros golpes da realidade
E de lutas cristalizadas
Pelos delírios coletivos
De horas melhores.
Eu sou a neta que aprendeu
Que rompidos claustros e cativeiros
Os definhamentos e os costumes da obediência
Posso ser todas elas
E mais as que quiser!
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.