Linaldo Guedes
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Conheci Nara Leão através da canção “João e Maria”, ela com Chico Buarque. Uma canção que tem uma história interessante de como se tornou um dos maiores sucessos de Chico, desde a sua criação, até de como caiu nas graças da Jovem Pan, popularizando a música. Quando ouvi essa música, fiquei apaixonado por Nara. Tinha entre 12 e 14 anos. Fiquei encantado pela voz de Nara Leão e achava ela diferente de todo artista que acompanhava do mundo da música. Como se fosse alheia a todo esse mundo, apesar do enorme talento que tinha dentro dela. “Ninguém pode com Nara Leão – Uma biografia”, de Tom Cardoso (Editora Planeta), confirma minhas suspeitas.
Vocês já imaginaram, por exemplo, um poeta que estivesse na base de todos os movimentos literários que existiram, como Barroco, Romantismo, Modernismo, Concretismo, etc? E que não apenas fizesse poemas baseados nesses movimentos, mas também estivesse inserido de certa forma em todas as escolas literárias? Pois foi o que aconteceu com Nara Leão em relação a música, como se pode constatar após a leitura da obra de Tom Cardoso. Foi no apartamento dos pais de Nara que a Bossa Nova começou a ser gestada; foi Nara que resgatou o samba de Zé Keti; quem valorizou a genialidade do então jovem Chico Buarque; que participou das bases do disco-manifesto “Tropicália – ou panis et circense”; Foi ela, enfim, que enquanto grande artistas da MPB faziam passeatas contra a guitarra elétrica, defendia a Jovem Guarda e mais tarde gravaria um disco todo dedicado a Roberto Carlos. E tudo isso sem deixar de ser ela mesma, com suas qualidades e defeitos e sua coragem de não ter medo de patrulhamentos, nem ideológicos e nem culturais.
O livro de Tom Cardoso revela todas essas facetas de Nara Leão, que na verdade era uma só. Ela mesma, uma artista comprometida com seus valores musicais. Apesar do recato, tinha uma personalidade forte e não fugia de dar opiniões polêmicas. “Já pensou organistas medievais fazendo passeata contra o piano”, provocou ao criticar as manifestações contra a chegada da guitarra elétrica na música brasileira. E olha que vários de seus colegas de arte lideravam tais manifestações em defesa da “soberania nacional”, como Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Elis Regina, esta que alimentou, inclusive, uma rivalidade artística com Nara Leão. As duas chegaram a protagonizar bate-rebate em entrevistas na imprensa da época e a rivalidade só veio a acabar já próximo da morte de Elis Regina, que ao encontrar Nara em um voo pediu desculpas por tudo. Tom Cardoso relata bastidores dessa refrega entre Nara e Elis com riqueza de detalhes, inclusive reproduzindo matérias de jornais da época.
Nara na infância e adolescência tinha os apelidos de Jacarezinho do Pântano e Caramujo (por conta de sua timidez). Até em função desse seu recato, Nara contou com a sorte de ter iniciado na música no momento em que a Bossa Nova surgia com força no cenário nacional, movimento que nunca priorizou intérpretes de vozes fortes, apesar de ela ter sido alvo de deboches e indiferenças dos artistas bossanovistas nos ensaios que rolavam em sua casa – sendo chamada muitas vezes de café com leite. Mas sem talento, sorte não dura muito tempo. E Nara tinha talento para dar e vender. Além de personalidade para impor seu repertório junto às gravadoras.
E também de impor suas opiniões políticas. A entrada no Centro Popular de Cultura – CPC levou a Nara a ter uma postura mais engajada politicamente, graças às amizades com nomes como Ferreira Gullar, Carlinhos Lyra, Vianinha e à turma do Cinema Novo. Daí a coragem de não se tornar refém da Bossa Nova, ao gravar os sambistas do morro. Sim, o morro passou a ter vez na voz de Nara Lão. Quem não tinha vez era o Exército. Em entrevista concedida em pleno auge da Ditadura, Nara Leão desancou a instituição. Disse que o os generais podiam entender de canhão e de metralhadora, mas não pescavam nada de política. Foi mais longe e chegou a sugerir a extinção do Exército. E quando todo mundo da esquerda estava saudando aquela Nara politicamente engajada, ela resolve valorizar a guitarra elétrica e a Jovem Guarda, movimento que fazia música para “alienados”, conforme a crítica da época.
O livro de Tom Cardoso tem farta iconografia com várias passagens da vida e da carreira de Nara Leão, com orelhas de Teresa Cristina e prefácio de Tárik de Sousa. É, sobretudo, um rico painel dos bastidores da Música Popular de Brasileira, das relações musicais e de afeto dela com Chico Buarque, da descoberta de Maria Bethânia, dos festivais de música e das rivalidades dos artistas do primeiro time da MPB nos anos 1960. A obra narra, também, detalhes da vida pessoal de Nara Leão. Seus amores e suas dores, mas tudo com muita delicadeza e elegância por parte de Tom Cardoso, mesmo quando fala do suicídio de Doutor Jairo, pai de Nara.
Nara disse, certa feita: “Uma hora eu sou a musa da bossa nova, outra cantora de protesto, e ainda tem essa coisa ridícula do joelho. Então me recuso a virar sabonete e vou dar uma parada”. Felizmente essas ameaças não duravam muito. E Nara voltava a cantar, revelando compositores sem abrir de ter um repertório variado em seus discos. Só parou quando chegou sua hora de partir. Mas ficou sua voz e a sensação de que Nara nasceu para bailar na cara de conservadores e engajados.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.