Nonato Guedes
Em meio às eleições do próximo ano, envolvendo presidência da República, Congresso Nacional (Câmara e Senado) e governadores, será assinalado um registro histórico: o transcurso dos 40 anos da retomada de eleições diretas aos Executivos estaduais. Elas transcorreram em 1982, pondo fim ao ciclo de “governadores biônicos”, ou “indiretos”, que eram sacramentados por Assembleias Legislativas com o aval do Palácio do Planalto. O primeiro beneficiário da disputa eleitoral “a céu aberto” pelo Palácio da Redenção na Paraíba foi Wilson Leite Braga, líder político populista, recentemente falecido de complicações da Covid-19, que concorreu pelo PDS e derrotou por 151 votos de maioria o então deputado federal Antônio Mariz, que migrara da Arena para o PMDB depois de ter encabeçado dissidências no antigo partido de sustentação do regime militar. Ainda em 82 o nascente Partido dos Trabalhadores concorreu pela primeira vez ao governo da Paraíba, com Derly Pereira, advogado e dirigente da agremiação a nível local.
As eleições diretas para governadores de Estados foram suprimidas com o avanço da hegemonia dos militares no poder. Em 1965, um ano após o golpe militar, a Paraíba ainda vivenciou a disputa pelo voto com a ascensão de João Agripino Filho, infligindo derrota memorável ao senador Ruy Carneiro. Já na sucessão de Agripino a moeda corrente foi a eleição indireta, com a confirmação do nome do deputado federal Ernani Sátyro, defensor ferrenho da nova ordem, decidida nos esconsos de gabinetes influentes de Brasília e da Paraíba. Outras duas figuras de expressão alçaram ao Palácio da Redenção na sequência – Ivan Bichara Sobreira e Tarcísio Burity. Em 82, Braga impôs-se sem competidores mais fortes dentro do PDS como candidato para o voto popular e saiu consagrado. Detalhe relevante é que Burity, embora tenha entrado na política pela via indireta, testou-se nas urnas com sucesso em duas empreitadas: deputado federal em 1982 e novamente governador, em 1986.
A volta das diretas para governadores fez parte de uma estratégia gradual de concessões do regime militar no jogo político-institucional brasileiro, a partir do reconhecimento da exaustão da ditadura e do desgaste de erros na política econômica dos governos de generais, em paralelo com o vasto e pesado contencioso de arbitrariedades policiais contra opositores políticos da autodenominada “revolução”, com cassações de mandatos, prisões, exílio, torturas e a censura aos meios de comunicação e atividades artísticas. Já no mandato do general Figueiredo, o último presidente do “ciclo militar”, ensaiou-se processo de liberalização do sistema cujo ponto alto foi a concessão de anistia, ainda que com restrições, já que não foi ampla, geral e irrestrita como reivindicavam os opositores da ditadura. O calendário gradativo previa a normalização de eleições dentro de etapas monitoradas pelos estrategistas do Planalto, guiados pela doutrina do general Golbery do Couto e Silva predizendo “sístoles” e “diástoles” do processo político.
Os donos do poder – na definição clássica de Raymundo Faoro – estavam francamente acuados na conjuntura política brasileira e tendentes a uma situação de isolamento entre países que chegaram a optar por ditaduras mas acabaram tendo que fazer concessões, na base da entrega dos anéis para não perder os dedos todos das mãos. A eleição direta para governadores foi colocada no tabuleiro como elemento de barganha para o retorno gradual da normalidade democrática. Depois dela, foram restabelecidas eleições para prefeito em capitais e cidades consideradas como de segurança nacional. Em paralelo, o Brasil reconquistou o pluripartidarismo, com a reincorporação de líderes populares que haviam sido punidos pela linha dura do regime militar, a exemplo de Leonel Brizola e Miguel Arraes. O novo pluripartidarismo possibilitou a inserção de partidos como o PT, que se anunciava com bases operárias. Outro marco destacado foi a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que fixou as bases para a reconstrução do pacto social e federativo. Como corolário, tornaram-se inevitáveis as eleições presidenciais diretas, com o célebre confronto que registrou recorde de candidatos e que trouxe como novidade o segundo turno. A parada final foi decidida entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, com a vitória do primeiro, que também acabou sendo o primeiro presidente a sofrer impeachment à frente do cargo.
De lá para cá, alguns outros experimentos foram sendo introduzidos pela classe política a pretexto de aprimorar o sistema político brasileiro que, na opinião generalizada, estava carcomido ou defasado. Foi assim que a partir das eleições de 1998 prevaleceu o instituto da reeleição, inicialmente para presidente da República e governadores estaduais, extensivo, depois, a prefeitos de Capitais e localidades de todo o território nacional. Engraçado é que muitos dos que aceitaram concorrer à reeleição diziam-se, por princípio, contrários ao instituto, por entender que ele beneficiaria, prioritariamente, os que já estavam exercendo o poder e procuravam esmagar seus opositores. Mas mesmo os críticos da reeleição não abriram mão do direito de concorrer. Afinal de contas, a alternativa ficou consagrada como uma espécie de plebiscito ou julgamento de administrações – e é certo mesmo que são inúmeros os casos de governadores que não lograram ser reconduzidos aos Executivos estaduais.
Na Paraíba, o primeiro político bafejado com a reeleição ao governo do Estado foi José Maranhão (PMDB-MDB), que havia assumido a titularidade com a morte de Antônio Mariz, de quem era vice. Ele manejou os cordéis para se assenhorear do controle da máquina partidária, ao mesmo tempo em que reforçava a retaguarda das ações de governo para massificar sua imagem. Foi desafiado pelo grupo Cunha Lima, que estava em nítida desvantagem e que não teve maiores perspectivas de crescimento naquela disputa. O adversário principal de Maranhão acabou sendo o deputado Gilvan Freire, pelo PSB, que sofreu derrota acachapante. O então governador foi o mais votado, proporcionalmente, entre todos os candidatos a governos estaduais do país. Depois dele, lograram reeleger-se Cássio Cunha Lima e Ricardo Coutinho. O sucessor de Ricardo, João Azevêdo, vai se habilitar à recondução pelas urnas em 2022.
Entre analistas políticos afirma-se que a reconquista das eleições diretas para governadores foi extremamente útil para acelerar a retomada do processo de redemocratização e para possibilitar a introdução de outras conquistas importantes que têm sido pontualmente enfeixadas no modelo institucional. É preciso não deixar de reconhecer que a sociedade civil brasileira teve papel dos mais significativos para esse desideratum, atuando como força de pressão, inclusive, nos casos dolorosos de impeachment de dois presidentes da República – Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff. Ainda há muito o que reformar no sistema político brasileiro, mas parece consensual que a representatividade da vontade popular está cada cada vez mais assegurada e que a consciência democrática da sociedade é o anteparo a manobras golpistas saudosistas que de tempos em tempos afloram no horizonte da política tupiniquim.