Nonato Guedes
Hoje é o transcurso dos 57 anos do movimento militar de 1964, que foi chamado de revolução e que instaurou uma ditadura por cerca de 21 anos no Brasil. E na véspera do evento, tão importante para figuras como o capitão reformado Jair Bolsonaro, presidente da República, deflagrou-se uma inédita crise militar em que os comandantes das Forças Armadas pediram demissão em protesto contra diretrizes políticas do mandatário. Entregaram os cargos os comandantes do Exército, Edson Pujol, da Marinha, Ilques Barbosa e da Aeronáutica, Antônio Carlos Moretti Bermudez. O anúncio aconteceu um dia após Fernando Azevedo e Silva ter deixado o cargo de ministro da Defesa. É a primeira vez, desde 1985, que os comandantes das três Forças Armadas deixam o cargo ao mesmo tempo sem ser em período de troca de governo.
Colunistas da mídia sulista traduziram que a saída de Fernando Azevedo e Silva foi recebida com preocupação por integrantes da ativa e da reserva das Forças Armadas e como algo além de uma troca para acomodação de espaços no primeiro escalão do governo. O movimento foi interpretado em algumas áreas como sinal de que o presidente Jair Bolsonaro deseja ter maior influência política nos quartéis. Em novembro do ano passado, o comandante do Exército, Edson Pujol, afirmou que os militares não queriam fazer parte da política, muito menos deixar a política entrar nos quartéis. Sua posição foi reforçada, na ocasião, pelo vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. Apurou-se que, ultimamente, Bolsonaro decidiu impor lealdade à sua liderança por parte da tropa, mesmo em ocasiões pautadas por graves erros como os que foram verificados na condução da pandemia do novo coronavírus no Brasil. A desvantagem dessa estratégia é que ela pode não passar de uma terrível “trapalhada”, comprometendo a própria segurança do mandato de Bolsonaro.
Generais que falaram “em off” ao blog de Andréia Sadi, repórter, também, da TV Globo, confirmaram que a situação entre Bolsonaro e alguns oficiais ficou insustentável nas últimas semanas quando o mandatário passou a cobrar postagens nas redes sociais de manifestações de defesa do governo. “Ele tem preferência por um perfil no Exército que se intrometa na política”, acrescentaram essas fontes, observando, todavia, que as resistências são muito fortes e que alguns chefes militares deixaram claro que o limite para eles, independente do respeito ao presidente, é o cumprimento da Constituição. Tem sido perceptível, há bastante tempo, a situação de desconforto reinante da estratégia do capitão em associar as Forças Armadas ao seu governo, tornando-os siameses no desgaste que este tem enfrentado em segmentos da opinião pública.
A indicação do general Eduardo Pazuello, por exemplo, para o Ministério da Saúde, sempre foi fator de divisão nas áreas militares, receosas de um envolvimento tácito das Forças Armadas em episódios de repercussão negativa que são perseguidos diretamente pelo político Jair Bolsonaro. Incomodam sobremaneira as reiteradas pregações do presidente da República fazendo apologia a medidas autoritárias que vigoraram na ditadura e que, a dados de hoje, não encontram acolhida em setores formadores de opinião da sociedade. Ao mesmo tempo, a movimentação ostensiva do presidente Jair Bolsonaro para proclamar uma espécie de “autogolpe”, passando a acumular poderes excepcionais, é vista como elemento de absoluta instabilidade e de enfraquecimento da ordem democrática que a maioria da população defende. Sobre a mistura que Bolsonaro faz de imagens, de propósito, cita-se um fato emblemático – em maio de 2019, ele convocou as Forças Armadas e, no dia seguinte, foi a uma manifestação antidemocrática com discurso insinuando que as forças estavam com ele.
A respeito da decisão de mirar o uso da força como uma ameaça às instituições, militares baseados em Brasília sustentaram para jornalistas que o Exército é uma instituição “muito sólida” e não embarcaria em uma “aventura” do presidente da República. Além do mais, um outro raciocínio dominante leva em conta o fato de que Bolsonaro tem militância na atividade política e foi graças a essa atuação que conseguiu ser alçado à Presidência da República, disputando a eleição de 2018 e vencendo, no segundo turno, o candidato Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores. Consequentemente – afirma-se – é no território político que Bolsonaro deve concentrar suas atenções e seus projetos de continuidade no poder, diante da obsessão que não esconde de ser candidato à reeleição. Da mesma forma não há apoio à tensão permanente aliada por Bolsonaro com poderes como o Supremo Tribunal Federal ou com governadores de Estados, tendo como pano de fundo a divergência em torno do plano de imunização contra o coronavírus.
O golpe de 64 cada vez mais vai se distanciando na memória política brasileira, restando hoje como registro histórico de uma intervenção que não deve ser estimulada no jogo democrático. O Brasil já superou inúmeros obstáculos na cruzada pela redemocratização, o que não impede que ainda proliferem grupos autoritários saudosistas de um tempo em que haviam órfãos do “talvez”, do “quem sabe?”. Mas pesquisas sucessivas têm reafirmado ampla manifestação de aceitação e apoio ao regime democrático, lastreado no chamado Estado de Direito. Desse ponto de vista, além de estar na contramão da História, Jair Bolsonaro aparece isolado perante o contexto mundial, na liderança de um grupo fanático que tenta ressuscitar experimentos abomináveis para o organismo da Nação. Ditadura nunca mais é o que Bolsonaro precisa aprender de uma vez por todas e, sobretudo, ao ensejo do transcurso de mais um ano da quartelada que infelicitou o Brasil e instituiu a longa noite das trevas.