Linaldo Guedes
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Muitos poetas costumam relatar as dificuldades que têm para colocarem títulos em seus poemas. Alguns só fazem os títulos depois dos poemas construídos. Outros, só começam um poema depois do título feito. A poeta Nágila de Sousa Freitas faz uma provocação com esse dilema em “O poema é mais belo que o título”, publicado neste início de 2021 pela Arribaçã. Detalhe: todos os poemas contidos nas 118 páginas do livro têm títulos. E criativos, diga-se de passagem. Mas Nágila procura valorizar mais os poemas em si do que o título. É uma provocação interessante. Destaque também para a capa, de Ingrid Stephane a partir de desenho de Fernanda Negreiros – uma mandala que deve ser visualizada com a capa e a contracapa abertas.
Então, vamos aos poemas do livro. Primeiro que tudo, me surpreendi com a poética de Nágila de Sousa Freitas, autora natural de Ipaumirim, no Ceará, mas com atuação cultural e literária na Paraíba, também. Apesar de jovem, a poeta consegue ter um domínio bem interessante do artefato poético, da linguagem literária.
Sua poesia foge de uma poesia que existe hoje no Brasil, tecnicamente perfeita, sim. Mas com pouco conteúdo, com pouco arrebatamento para o leitor. A sua poesia é arrebatamento, é descoberta, é líquido a escorrer águas em nossas retinas leitoras, com uma solidez que me encantou.
Destaco vários e vários poemas. “Lavrador” é um belo poema com forte carga de metalinguagem. Acabei me lembrando de uma música chamada “Metáfora”, de Gilberto Gil, música antiga. Lembrança em termos de construção de linguagem. Diz o poema de Nágila:
“Há uma infinidade de ferramentas
no campo fértil da desinência.
O lavrador as usa no cultivo de suas sementes
para subsistência de seu verbo – o dizer,
ante a máquina que corta a palavra,
torna-se eterno o fazer da fala.
Limpará o terreno
e nele germinará outros frutos.
O lavrador de tanto planear seu campo,
exaustou de tédio a vocação.
Refugiou-se no meio das plantações
Escondeu-se dos cobradores
e fingiu dormir em paz no meio de seus engenhos.
A cabeça branca de regar a própria história
os pés cansados de fugir do tempo
e a aparência farta de fingir a si mesmo.
O que é o lavrador, afinal…
Criador, fugidor ou fingidor?
— O lavrador é uma lavra de dor”.
Gostei também de “Gênese”, da faísca, do fogo poético. Dos paradoxos inteligentes existentes na poesia de Nágila. E dos jogos de palavras que não se restringem apenas aos trocadilhos infames de muitos poetas modernos.
Gostei de alguns poemas narrativos, como “A morte do sujeito de mil caras”. Dos poemas sobre o tempo. Dos poemas filosóficos, como “Geometria do fio”. Do humor irônico de “Potência”. Dos achados poéticos, como dizer que “O problema do mundo é o espirro brusco de deus”. Dos poemas em prosa. Dos poemas políticos. E do erotismo muito bem construído de “As cordilheiras”:
“As mãos passeiam pelas cordilheiras,
curvas que precipitam a castidade da chuva.
Suas placas macias dominam o tempo.
A mais reconhecida pelo toque dos dedos.
As mãos sobem até o monte da prisão.
Vê-se uma miragem, frisagem de uma paisagem.
E quando do monte, se lança a primeira elevação,
as mãos são presas em suas cadeias secundárias.
No vaivém do passeio,
as mãos sobem e descem as cordilheiras,
até umedecer os dedos”.
A poesia de Nágila de Sousa Freitas vem referendada por Salgado Maranhão. Diz ele: “Poeta até na raridade do seu próprio nome. Nesta coletânea de belos e instigantes poemas, a palavra sabe o que diz, porque a noção de síntese e carpintaria verbal da autora existe não para conter o voo, mas para turbiná-lo. Trata-se de um domínio que prescinde de aprendizado, é algo só para os que já nascem dotados dessa torteza do olhar através do poético”.
Nágila diz num dos poemas que é uma semente adolescendo. Diria que é semente que brota poesia de muita qualidade. E que está pronta para ser colhida por nós, leitores.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências das Religiões e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.