Nonato Guedes
O ex-presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (MDB-RJ), que cumpre prisão domiciliar, e que foi peça-chave na decretação do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), concluiu o livro de 797 páginas intitulado “Tchau, Querida – O Diário do Impeachment”, escrito em parceria com sua filha mais velha, Danielle Cunha, de 33 anos, que será lançado pela editora Matrix no dia 17 de abril, coincidindo com o aniversário de cinco anos da sessão que expulsou Dilma do Palácio do Planalto. A revista “Veja” teve acesso, com exclusividade, ao relato de Cunha sobre bastidores inéditos do processo e diz que ele expõe, sem pudores, um duro jogo de chantagens mútuas, lobby de empresários graúdos e propostas indecentes. “Embora seja uma narrativa obviamente enviesada (o autor tende a ser benevolente com seu comportamento e crítico com a maioria dos outros personagens), é inegável o valor do documento”, atesta Gabriel Mascarenhas em matéria de capa da “Veja”.
Eduardo Cunha foi cassado por seus pares acusado de falta de decoro e passou três anos e cinco meses preso. Nesse ínterim, teve as negociações visando a uma delação premiada interrompidas porque os investigadores tinham convicção de que ele não contava tudo o que sabia. No livro, ainda que não admita os crimes pelos quais responde a dez processos, já com duas condenações, o ex-deputado elabora uma narrativa nua e crua do jogo político que resultou no impeachment de Dilma. Cunha disseca as motivações que o levaram a trair o PT, de quem era aliado, dando início ao processo de afastamento da mandatárial. Para o autor, além da vingança pela falta de apoio em sua eleição à presidência da Câmara, foi um ato de preservação – na sua visão, o avanço da Lava-Jato contra ele era um complô liderado por Dilma, apoiado por petistas de expressão como o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
A batalha que provocaria a queda de Dilma e, pouco tempo depois, a do próprio Cunha, num efeito dominó, poderia ter sido evitada, conforme o ex-presidente da Câmara. Se o TV não tivesse tentado derrotá-lo na Câmara, ele jura que jamais teria detonado o impeachment. Por sua vez, Eduardo Cunha faz um mea-culpa, afirmando que o rompimento por parte dele foi um erro que o obrigaria a administrar as consequências disso. Mesmo em meio à guerra já declarada, o autor conta ter tido a disposição de voltar atrás, caso cessassem os ataques. Cunha, naturalmente, refuta a teoria de golpe e faz uma ironia com o histórico do PT, que defendeu arduamente afastamentos de presidentes antecessores. Lembra que o partido comemorou como se fosse sua vitória a derrocada de Fernando Collor de Mello e tentou fazer o mesmo com Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco. “Quem com golpe fere, com golpe será ferido”, estoca Eduardo Cunha.
O ex-presidente da Câmara é implacável com o ex-presidente Michel Temer, a quem trata como conspirador e traidor. Enfatiza que desde o momento zero Temer trabalhou arduamente pelo impeachment, inclusive negociando cargos do futuro governo antes mesmo de o processo estar sacramentado na Câmara. “Temer não só desejava o impeachment como lutou por ele de todas as maneiras – ao contrário do que ele quer ver divulgado sobre o assunto”, relata Eduardo Cunha, acrescentando: “Jamais esse processo de impeachment teria sido aprovado sem que Temer negociasse cada espaço a ser dado a cada partido ou deputado que iria votar a favor da abertura dos trâmites”, assinala. Cunha informa que recebia as demandas dos parlamentares e as levava ao dono da caneta (Temer). Este avalizava praticamente tudo, na busca por votos pela deposição de Dilma, e um exemplo citado foi a nomeação do deputado Marcos Pereira, do Republicanos, para o Ministério da Indústria e Comércio Exterior. Procurado por “Veja”, o ex-presidente da República não quis comentar as memórias do ex-aliado.
A revista lembra que anos após a queda de Dilma a história vinculou os nomes de Cunha e Temer ao do empresário Joesley Batista, na fatídica gravação em que o então presidente Michel Temer diz “Tem que manter isso aí, viu?”, sobre as boas relações que o dono da JBS sustentava ter com o ex-deputado, preso àquela altura. Em “Tchau, Querida”, esses personagens compõem uma espécie de tríplice aliança pela queda de Dilma Rousseff. O ex-presidente da Câmara descreve Joesley como um elemento fundamental para o impeachment e deixa claro o nível de intimidade entre os dois, que se consultavam sobre indicações de nomes para cargos no governo e outras “coisitas más”. Dilma também se destaca na obra, claro. Cunha atribui a ela um ódio mortal contra a sua pessoa, mas revela que em meio à guerra viveu cordiais momentos de armistício com a petista. Isto não o impede de atribuir a Dilma uma inabilidade política letal, característica reconhecida até por seus pares, inclusive o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A “metralhadora giratória” acionada por Eduardo Cunha alcança outros figurões da República, entre gente do governo, líderes políticos, ministros e juízes que dão expediente em tribunais. Escrever o livro para dar sua versão dos fatos, em meio à chusma de versões que têm circulado sobre a história da Era PT tornou-se uma obsessão para Eduardo Cunha, a pretexto de passar a limpo um dos capítulos mais importantes da história recente da política brasileira. Em obras desse gênero, os autores buscam se glorificar em detrimento dos inimigos não apenas como forma de expiação, mas como manobra para serem anistiados pelo julgamento da História. O pivôt formal do impeachment de Dilma foi a prática de pedaladas fiscais, conforme denunciado pelo Tribunal de Contas da União. O PT sempre insistiu na teoria de “golpe”, para poupar Dilma e a legenda, mas o próprio Lula já confessou arrependimento por ter patrocinado a reeleição de sua pupila ao Planalto. O livro de Eduardo Cunha, malgrado a folha corrida do autor, joga luzes sobre episódios nada edificantes de alguns dos principais nomes da política e do empresariado nacional. É a anatomia de um jogo sujo e de propostas indecentes no cenário onde se decidem os destinos da Nação. Cunha pode ser um escroque da política, mas seu relato deve ser levado em conta, pela minudência de detalhes sobre fatos escabrosos da realidade do poder no Brasil, não poupando gregos nem troianos.