Linaldo Guedes
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O que seria da boa literatura não fossem as grandes personagens das obras publicadas? Capitu, por exemplo, é muito maior do que o livro “Dom Casmurro”. Riobaldo e Diadorim são imensos, maiores que “Grande Sertão:Veredas”; os Irmãos Karamazov são tão importantes que dão título ao romance de Dostoévski; Baleia é mais humana que todos as personagens de “Vidas Secas”; Tieta e Gabriela valem mais do que toda a obra de Jorge Amado e por ai vai.
“Verás que tudo é mentira’, novo livro de contos de Mário Baggio, é farto de grandes personagens. A obra saiu com o selo da editora Coralina e tem capa e projeto gráfico de Angel Cabeza. O próprio Baggio explica a diferença entre esta obra e as anteriores dele, inclusive “Espantos para uso diário”, que também tive o prazer da leitura: “Se em (…) minhas publicações anteriores eu me detive nos pequenos acontecimentos cotidianos, nas situações comezinhas desta vida, sem destacar tanto os personagens desses acontecimentos, no presente volume são eles – os personagens – que assumem o protagonismo”. É o que vemos nas 206 páginas do livro.
Já no primeiro conto – “Aprendizado” – é o Pai que se impõe, abrindo veredas a golpes de facão. “A felicidade nem sempre é divertida”, o conto seguinte, narra a história de Júlio Ribeiro, que também é Eduardo, mostrando que mais importante do que o que somos, às vezes, é o que as pessoas acreditam que a gente é. Que o diga Dona Maria Alice, neste que é um dos melhores contos do livro – em termos de construção do enredo, de narrativa e das possibilidades que provoca no imaginário do leitor. Olha que diálogo interessante este:
“- Não, mãe, eu preciso ir agora. Raquel já deve ter chegado do interior e está sozinha em casa. Preciso voltar logo.
– Ah, que pena! Da próxima vez traga sua namorada para me conhecer. Quero ver quem é o amor do meu filho.
– É que eu não… – Júlio tinha resolvido desfazer a mentira naquele exato instante. Ia contar tudo para a velha, dizer que ela tinha se enganado, pedir desculpas e ir embora. Mas ela pôs os dedos nos lábios dele.
– Shhhh! Não precisa dizer nada, filho – olhou fundo nos olhos de Júlio – eu sei. Não se preocupe. Eu sei. A felicidade nem sempre é divertida, não é o que dizem?”
São de personagens maravilhosos, como os do conto citado, que é feita esta obra de Mário Baggio. Como a Izildinha e sua preocupação com a morte na narrativa com pitadas do fantástico “Uma família de muito barulho”. Tão fascinante quanto é Aurora, a causar delírios e tirar o juízo de Pestana, o policial. Ou tão fantástico quanto Leonel Cruz, Artista – cuja anomalia deveria ser vista como menor diante da violência de seu pai. Ou do silêncio barulhento de outro pai, agora no conto “De passagem”.
Outro dia li em algum canto que a ficção brasileira de hoje peca pela falta de unidade, como existia nos romances regionalistas de 1930. Será que isso é defeito? Uma das coisas ruins de movimentos literários é fazer com que todo mundo escreva igual ao outro, na temática e até no estilo. Uma das coisas boas é que tais movimentos não duram muito. Sou fã do romance de 30. Fui forjado como leitor ante obras como as de José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e outros. Mas por que devemos pagar de saudosistas eternos, quando tanta obra boa está saindo na ficção brasileira contemporânea. A multiplicidade de temas é que dá o tom da qualidade do que vem sendo publicado hoje. Como os contos de Mário Baggio. Vejam vocês que em um livro só temos personagens para todos os gostos.
É o caso de Mariquinha, uma espécie de Geni de guarda-chuva. Ou a descoberta do erotismo em Janete, num conto altamente sensorial. Ou no lúdico “Os tontos que se dizem Hemingway’. Ou no mais que fantástico “O coxo”, onde o personagem se descobre coxo ao tentar burlar uma vaga para deficiente no estacionamento de um supermercado – aliás, outro conto maravilhoso do livro, pela imprevisibilidade da narrativa.
Mas há outros personagens que vemos em tempo real nos noticiários televisivos e em redes sociais. Quantos Lucas deixam-se seduzir pelo pai e torcem pela surra da mãe? E quantas vezes não conhecemos mulheres como a de Lot, que vivem como estátuas em nosso cotidiano? Aliás, que bela recriação o Mário Baggio faz da história bíblica em “A mulher de olhos de amêndoa”!
E quantas Juremas pacientes não conhecemos no dia a dia? Quantos meninos sentem saudades de brincar com o avô, geralmente jogados em asilos por pais sem paciência? E a saga dos meninos-placa? Ah, vamos ser sinceros: quem cria personagens como esses e como “Negra Lili Marlene” já pode, sim, ser incluído entre os destaques do primeiro time da ficção contemporânea brasileira. Negra Lili cabe em qualquer personagem do cancioneiro popular da música brasileira. Chico Buarque adoraria tê-la criado! Não duvidem!
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.